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14/08/2014

Como queres que te ouçam?

Corres o grande perigo de te conformares com viver (ou pensar que deves viver...) como um "bom rapaz", que se hospeda numa casa arrumada, sem problemas, e que não conhece senão a felicidade. Isso é uma caricatura do lar de Nazaré. Cristo, justamente porque trazia a felicidade e a ordem ao mundo, saiu a propagar esses tesouros entre os homens e mulheres de todos os tempos. (Sulco, 952)

Parecem-me muito lógicas as tuas ânsias de que a humanidade inteira conheça a Cristo. Mas começa pela responsabilidade de salvar as almas dos que convivem contigo, de santificar cada um dos teus companheiros de trabalho ou de estudo... Esta é a principal missão de que o Senhor te encarregou. (Sulco, 953)

Comporta-te como se de ti, exclusivamente de ti, dependesse o ambiente do lugar onde trabalhas: ambiente de laboriosidade, de alegria, de presença de Deus e de visão sobrenatural.

Não entendo a tua debilidade. Se tropeças com um grupo de colegas um pouco difícil (que talvez tenha chegado a ser difícil por desleixo teu...), esqueces-te deles, pões-te de parte, e pensas que são um peso morto, um lastro que se opõe aos teus ideais apostólicos; que nunca te entenderão...

Como queres que te ouçam, se (dando por descontado que os ames e sirvas com a tua oração e a tua mortificação) não falas com eles?...

Quantas surpresas apanharás no dia em que te decidas a criar amizade com um, com outro e com outro! Além disso, se não mudas, poderão exclamar com razão, apontando-te a dedo: "Hominem non habeo!", não tenho quem me ajude! (Sulco, 954)

Reflectindo 33


O poder da Confiança

Quando confiamos em alguém estamos como que a deixar sobre os seus ombros a solução dos problemas que se apresentam e que, para nós, parecem de difícil solução ou mesmo impossíveis de ultrapassar.

Confiados em que, esse alguém, tem a capacidade e a vontade suficientes para vencer o obstáculo, resta-nos a tranquila acção de graças pela inspiração que nos foi dada. 


(ama, 2014.05.28

Temas para meditar 205



Caridade

Agora adivinho que a verdadeira caridade consiste em suportar todos os defeitos do próximo, em não estranhar as suas debilidades, em edificar-se com as suas menores virtudes; mas aprendi especialmente que a caridade não deve permanecer encerrada no fundo do coração pois "não se acende uma luz para a colocar debaixo de um alqueire...".
Parece-me que esta tocha representa a caridade que deve iluminar e alegrar não só aqueles que mais amo, mas todos os que estão em casa.

(Stª teresinha do menino jesus História de uma alma Livr. Apost. da Imprensa 11ª Ed. Cap. 9 pg. 205)


Tratado da lei 84

Questão 107: Da comparação entre a lei nova e a antiga.

Art. 2 — Se a lei nova cumpriu a antiga.

[IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5, qª 2, ad 1, 3, Ad Rom., cap. III, lect. IV, cap. IX, lect. V, Ad Ephes, cap. II, lect. V].

O Segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova não cumpriu a antiga.

1. — Pois, o cumprimento contraria a abolição. Ora, a lei nova vem abolir ou excluir a observância da antiga, conforme diz o Apóstolo (Gl 5, 2): Se vos fazeis circuncidar, Cristo vos não aproveitará nada. Logo, a lei nova não veio cumprir a antiga.

2. Demais. — Um contrário não cumpre o outro. Ora, o Senhor propôs, na lei nova, alguns preceitos contrários aos da lei antiga. Assim, diz (Mt 5, 27-32): Ouvistes que foi dito aos antigos: Qualquer que se desquitar de sua mulher dê-lhe carta de repúdio. Mas eu vos digo que todo o que repudiar a sua mulher, a faz ser adúltera. E a seguir, o mesmo se dá com a proibição do juramento, e ainda com a pena de talião e com o ódio aos inimigos. Semelhantemente parece que o Senhor excluiu os preceitos da lei antiga relativos ao discernimento dos alimentos, quando diz (Mt 15, 11): Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem. Logo, a lei nova não cumpriu a antiga.

3. Demais. — Quem age contra a lei não a cumpre. Ora, em alguns casos, Cristo agiu contra ela. Assim, tocou o leproso, como diz o Evangelho (Mt 8, 3), o que era contra a lei. Também foi visto violar muitas vezes o sábado, pelo que dele diziam os judeus (Jo 9, 16): Este homem, que não guarda o sábado, não é de Deus. Logo, Cristo não cumpriu a lei. Logo, a lei nova, dada por Cristo, não veio cumprir a antiga.

4. Demais. — A lei antiga continha preceitos morais cerimoniais e judiciais, como já se disse (q. 99, a. 4). Ora, num lugar do Evangelho, onde se vê que o Senhor, a certos respeitos, cumpriu a lei, nenhuma menção se faz dos preceitos judiciais e cerimoniais. Logo, parece que a lei nova não veio totalmente cumprir a antiga.

Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 5, 17): Não vim destruir a lei, mas a dar-lhe cumprimento. E depois acrescenta (Mt 5, 18): não passará da lei um só i, ou um til, sem que tudo seja cumprido.

Como já dissemos (a. 1), a lei nova está para a antiga como o perfeito para o imperfeito. Ora, o perfeito completa o que falta ao imperfeito. E assim, a lei nova completa a antiga, suprindo-a no que lhe faltava.

Ora, duas coisas podem considerar-se na lei antiga: o fim e os preceitos nela contidos. — O fim da lei é tornar os homens justos e virtuosos, como já se disse (q. 92, a. 1). Donde, o fim da lei antiga era a justificação dos homens, o que porém não podendo fazer, o figurava por meio de certos atos cerimoniais e o prometia por palavras. E neste ponto a lei nova cumpre a antiga, justificando pela virtude da paixão de Cristo. E isto diz o Apóstolo (Rm 8, 3-4): O que era impossível à lei, enviando Deus a seu Filho em semelhança de carne de pecado, por causa do pecado, condenou ao pecado na carne, para que a justificação da lei se cumprisse em nós. E neste ponto a lei nova realiza o que a antiga prometeu, conforme o Apóstolo (2 Cor 1, 20): Todas as promessas de Deus são em seu Filho, i, é, em Cristo. E além disso, nesta matéria, cumpre também o que a lei antiga figurava. Por isso, a Escritura diz (Cl 2, 17), que as cerimónias eram à sombra das coisas vindouras, mas o corpo é um Cristo, i. é, a verdade pertence a Cristo. Por isso, a lei nova se chama lei da verdade, e a antiga, lei da sombra ou da figura.

Quanto aos preceitos da lei antiga, Cristo cumpriu-os com as suas obras e a sua doutrina. — Com as obras, porque quis circuncidar-se e observar as outras disposições legais, que devia no seu tempo observar, segundo a Escritura (Gl 4, 4): Feito sujeito à lei. — E com a sua doutrina cumpriu os preceitos da lei de três modos. — Primeiro, explicando-lhe o sentido, como se vê no caso do homicídio e do adultério, na proibição dos quais os Escribas e os Fariseus não viam senão o acto exterior proibido. Donde, o Senhor cumpriu a lei, mostrando que a sua proibição abrange também os actos internos dos pecados. — Segundo, o Senhor cumpriu os preceitos da lei ordenando como se haviam de observar mais perfeitamente as disposições da lei antiga. Assim, a lei antiga estatuía que se não perjurasse, o que se observa mais perfeitamente se a gente se abstém de todo de jurar, salvo em caso de necessidade. — Em terceiro lugar, o Senhor cumpriu os preceitos da lei, acrescentando alguns conselhos de perfeição, como se vê no Evangelho onde, a quem afirmava observar os preceitos da lei antiga diz (Mt 19, 21): Falta-te uma coisa: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, etc.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A lei nova não veio abolir a observância da antiga, senão na parte das cerimónias, como já dissemos (q. 13, 1. 3, 4), pois elas eram figurativas do futuro. Donde, pelo próprio fato de estarem cumpridos os preceitos cerimoniais, já realizado o que eles figuravam, já não deviam ser observados. Pois se o fossem, significariam algo de futuro, ainda não realizado. Assim também a promessa do dom futuro já não tem lugar, uma vez a promessa cumprida pela realização do dom. E deste modo, uma vez cumpridas, desapareceram as cerimónias da lei.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, os preceitos referidos, do Senhor, não são contrários aos da lei antiga. — Pois, o preceito do Senhor de não repudiar a esposa, não é contrário ao que a lei preceituava. E nem a lei disse — Quem quiser repudia a esposa — do que o contrário seria não repudiar. Mas certamente, não queria fosse à esposa repudiada pelo marido, quem interpôs um prazo para que o de ânimo pressuroso em separar-se, peado pela redação do libelo, se abstivesse da separação. Por isso o Senhor, a fim de o confirmar, para que a esposa não fosse repudiada facilmente, exceptuou só o caso da fornicação. — E o mesmo também se deve dizer quanto à proibição do juramento, conforme já advertimos — E o mesmo é patente na proibição do talião. A lei taxou o modo da vindicta, para que não a tomassem imoderadamente, da qual o Senhor mais perfeitamente demoveu aquele a quem advertiu se abstivesse dela completamente. — Quanto ao ódio dos inimigos, o Senhor removeu a falsa inteligência dos Fariseus, advertindo-nos que devemos odiar, não as pessoas, mas a culpa. — Enfim, quanto ao discernir dos alimentos, que era cerimonial, o Senhor não mandou que deixasse de ser observado, mas mostrou que nenhuma comida é em si mesma imunda, mas, só figuradamente, como já se disse (q. 102, a. 6 ad 1).

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei antiga proibia tocar no leproso, por que, fazendo-o, incorria-se numa certa imundície de irregularidade, assim como por tocar num morto, segundo já dissemos (q. 102, a. 5 ad 4). Ora, o Senhor, que era o curador do leproso, não podia incorrer em imundície. — Pelas coisas porém que fez no sábado, não aboliu em verdade a lei do sábado, como ele próprio o mostra no Evangelho. Quer porque fizesse milagre por virtude divina, que sempre age sobre as coisas, quer porque praticasse obras para a salvação humana, pois os Fariseus também providenciavam pela conservação dos animais, no dia de sábado, quer também porque, em razão da necessidade, desculpou os discípulos que colhiam espigas no sábado. Mas realmente, aboliu a lei do sábado como supersticiosamente a entendiam os Fariseus, pensando que a gente se devia abster mesmo das obras da salvação, nesse dia, o que ia contra a intenção da lei.

RESPOSTA À QUARTA. — No lugar aduzido do Evangelho não se lembram os preceitos cerimoniais da lei, porque a observância deles desapareceu totalmente, por terem sido realizados, segundo já dissemos (a. 1). — Dos preceitos judiciais só foi lembrado o do talião, de modo a ser entendido de todos os mais o que fosse dito deste. E o Senhor ensinou que, nesse preceito, a intenção da lei não era que se aplicasse a pena de talião pelo prazer da vingança, que ele exclui, advertindo que cada um deve estar preparado a sofrer injúrias ainda maiores, mas só por amor da justiça. E deste modo ainda permanece na lei nova a referida pena.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XIX Semana

Evangelho: Mt 18, 21. 19, 1

21 Então, aproximando-se d'Ele Pedro, disse: «Senhor, até quantas vezes poderá pecar meu irmão contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes?». 22 Jesus respondeu-lhe: «Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete. 23 «Por isso, o Reino dos Céus é comparável a um rei que quis fazer as contas com os seus servos. 24 Tendo começado a fazer as contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos. 25 Como não tivesse com que pagar, o seu senhor mandou que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo o que tinha, e se saldasse a dívida. 26 Porém, o servo, lançando-se-lhe aos pés, suplicou-lhe: “Tem paciência comigo, eu te pagarei tudo”. 27 E o senhor, compadecido daquele servo, deixou-o ir livre e perdoou-lhe a dívida. 28 «Mas este servo, tendo saído, encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários e, lançando-lhe a mão, sufocava-o dizendo: “Paga o que me deves”. 29 O companheiro, lançando-se-lhe aos pés, suplicou-lhe: “Tem paciência comigo, eu te pagarei”. 30 Porém ele recusou e foi mandá-lo meter na prisão, até pagar a dívida. 31 «Os outros servos seus companheiros, vendo isto, ficaram muito contristados e foram referir ao seu senhor tudo o que tinha acontecido. 32 Então o senhor chamou-o e disse-lhe: “Servo mau, eu perdoei-te a dívida toda, porque me suplicaste. 33 Não devias tu também compadecer-te do teu companheiro, como eu me compadeci de ti?”. 34 E o seu senhor, irado, entregou-o aos guardas, até que pagasse toda a dívida. 35 «Assim também vos fará Meu Pai celestial, se cada um não perdoar do íntimo do seu coração ao seu irmão»
19 1 Tendo Jesus acabado estes discursos, partiu da Galileia e foi para o território da Judeia, além Jordão.

Comentário:


Como foi possível que o Senhor deixasse que a dívida do seu servo atingisse aquela soma astronómica, o correspondente ao salário de sessenta milhões de dias de trabalho?

Porque era magnânimo e não faria “esse tipo de contas”, não pedia garantias.
A assim com Deus Nosso Senhor que vai “emprestando” sempre sem olhar à nossa real capacidade de O ressarcir.

Como, por exemplo, poderemos devolver-lhe a dádiva da vida? Ou a nossa filiação divina? Ou os bens alcançados na Cruz?

Devolver? Impossível, mas, agradecer, isso sim!
E como se somos tão atreitos a esquecer essa obrigação!

A “receita” é: tentando fazer, em tudo, a Sua Santíssima e Amabilíssima Vontade em todas as coisas.

(ama, comentário sobre Mt 18, 21; 19, 1, 2012.08.16)

Leitura espiritual




Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais

…/6

O mistério da Cruz



O sinal da cruz. "O teu nome será uma bênção", disse Deus a Abraão no princípio da História da salvação. Em Cristo, filho de Abraão, cumpre-se em plenitude essa palavra.

Ele é uma bênção para toda a criação e para todos os homens. Por isso mesmo, a cruz, que é o seu sinal no céu e na terra, tinha que converter-se no gesto de bênção propriamente cristão. Traçamos o sinal da cruz sobre nós mesmos e entramos assim no poder de bênção de Jesus Cristo. Fazemos o sinal da cruz sobre as pessoas para quem desejamos a bênção. Fazemos o sinal da cruz também sobre as coisas que nos acompanham na vida e que queremos voltar a receber das mãos de Deus.

Mediante a cruz, podemos abençoar-nos uns aos outros. Pessoalmente, nunca esquecerei com que devoção e com que recolhimento interior o meu pai e a minha mãe ajudavam os seus filhos a persignar-se com água benta, quando éramos pequenos. E faziam-nos também o sinal da cruz na testa, na boca, no peito, quando íamos ausentar-nos, sobretudo se se tratava de uma ausência particularmente longa [i].

Significado da Cruz.

A Cruz, um símbolo horrível?

Em certo sentido, a Cruz envolve um horror que não lhe devemos tirar. É o modo de execução mais cruel que a Antiguidade conhecia e que não se podia aplicar aos romanos, porque mancharia a honra romana. Ver que o mais puro dos homens, que era mais do que um homem, é executado de modo tão cruel pode levar-nos, primeiro, a ficar horrorizados. Mas precisamos horrorizar-nos connosco e sair do nosso comodismo.

Neste ponto, penso que Lutero estava com a razão quando disse que o homem tem de se horrorizar consigo mesmo para chegar ao bom caminho.

Mas não se há-de ficar no horror, não se trata apenas de horror, pois quem nos olha do alto da Cruz não é um homem fracassado, um homem desesperado, uma das terríveis vítimas da humanidade: esse Crucificado diz-nos uma coisa diferente do que nos dizem Espártaco e os seus seguidores derrotados. Dessa Cruz, olha-nos uma bondade que permite que a vida recomece mesmo no horror. Olha-nos a própria bondade de Deus, que se entrega às nossas mãos, que se dá a nós e que, por assim dizer, suporta connosco todo o horror da História. Numa perspectiva mais profunda, esse sinal, que nos apresenta a dimensão perigosa do ser humano e todos os seus horrores, deixa-nos então contemplar ao mesmo tempo o Deus mais forte, mais forte na sua fraqueza, e o facto de sermos amados por Ele. É um sinal de perdão, na medida em que dá esperança, mesmo nos abismos da História.

Actualmente, faz-se muito a pergunta de como ainda seria possível falar de Deus depois de Auschwitz e de como ainda seria possível fazer teologia. Eu diria que a Cruz resume antecipadamente o horror de Auschwitz. Deus está crucificado e diz-nos que esse Deus, aparentemente tão fraco, é o Deus que -incompreensivelmente - perdoa, e que, na sua aparente ausência, é o Deus mais forte [ii].

O mistério da Cruz. O cristianismo não é um sistema intelectual, uma coleção de dogmas ou um moralismo. O cristianismo é, pelo contrário, um encontro, uma história de amor. Esse "caso" de amor com Cristo, essa história de amor [...], é ao mesmo tempo completamente alheia a qualquer entusiasmo superficial ou romanticismo vago. [...]

Encontrar Cristo significa segui-lo. Esse encontro é uma estrada, uma jornada, uma jornada que também passa pelo vale da sombra da morte (Si 22 [23], 4). O Evangelho fala-nos das trevas que envolveram os sofrimentos finais de Cristo, da aparente ausência de Deus, do eclipse do Sol do mundo. [...]
Segui-lo significa passar pelo vale da sombra da morte, enveredar pelo Caminho da Cruz, enquanto se vive na verdadeira alegria.

Por que é assim?

O próprio Senhor traduziu o mistério da Cruz, que no fundo é o próprio mistério do amor, por meio de umas palavras que exprimem integralmente a realidade da nossa vida. Diz: Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á (Mt 16, 25) [iii].

Sofrimento humano e mistério da cruz.

Costumamos pensar no sofrimento como algo que deve ser evitado a todo o custo, E não há nada que irrite mais determinadas sociedades do que a ideia cristã de que se deveria suportar a dor e o sofrimento, e mesmo entregar-se a eles, a fim de superá-los. Sofrer, dizia João Paulo II, é parte do mistério de ser homem.

Por que é assim?

Hoje, o que se pretende é eliminar o sofrimento da face da terra. Para o indivíduo, isso significa evitar a todo o custo a dor. No entanto, precisamos enxergar também que é precisamente dessa forma que o mundo se torna muito duro e muito frio.
A dor é parte do ser humano.

Quem quisesse realmente livrar-se do sofrimento, antes de mais nada teria que livrar-se do amor; não há amor sem sofrimento, pois o amor sempre exige certa dose de sacrifício: diante das diferenças de temperamento e dos dramas humanos, sempre trará consigo renúncia e dor.

Quando sabemos que o caminho do amor - esse êxodo, esse sair de si mesmo - é o verdadeiro caminho pelo qual o homem se torna humano, compreendemos também que o sofrimento é o processo pelo qual amadurecemos. Quem aceita interiormente o sofrimento torna-se mais maduro e mais compreensivo com as fraquezas dos outros: mais humano.
Quem evita com pertinácia o sofrimento não é capaz de entender os

outros: torna-se duro e egoísta.
O próprio amor é uma paixão, isto é, algo que acontece connosco.
No amor, a primeira experiência é uma alegria, um sentimento geral de alegria; mas, por outro lado, vejo-me arrancado à minha confortável tranquilidade e tenho que deixar-me reformular.

Se compreendermos que o sofrimento é o "lado de dentro" do amor, entenderemos também como é importante aprender a sofrer - e veremos por que, em sentido inverso, a fuga de todo o sofrimento torna a pessoa incapaz de lidar com a vida: cairia num estado de vazio existencial, que só pode estar associado à amargura, à rejeição, e já não permite nenhuma aceitação interior nem nenhum progresso na direção da maturidade [iv].

A Cruz e a Eucaristia.

Se o grão do trigo que cai na terra não morre, fica só; mas, se morre, dá muito fruto (Jo 12, 24). O Senhor interpreta todo o seu caminho terreno como o percurso do grão do trigo que só chega a produzir fruto morrendo. Interpreta a sua vida terrena, a sua morte e a sua ressurreição de modo a desembocar na Santíssima Eucaristia, na qual está compendiado todo o seu mistério.
Depois de ter vivido a sua morte como uma oferenda de si mesmo, como um acto de amor, o seu corpo foi transformado na nova vida da ressurreição. Por isso, Ele, o Verbo encarnado, tornou-se agora o nosso alimento, que conduz à verdadeira vida, à vida eterna. O Verbo eterno – a força criadora da vida - desceu do céu, tornando-se assim o verdadeiro maná, o pão que o homem comunga na fé e no sacramento [v].


A Sagrada Eucaristia

Eucaristia. Na crise de fé que estamos vivendo, o ponto neurálgico é, cada vez mais, a recta celebração e a recta compreensão da Eucaristia [...].

Todos nós sabemos qual é a diferença entre uma igreja onde se reza e uma igreja reduzida a um museu. Hoje corremos o risco do que as nossas igrejas se convertam em museus e acabem como os museus: se não fecharem, serão espoliados. Não têm vida. A medida da vitalidade de uma igreja, a medida da sua abertura interior, mostrar-se-á pelo facto de as suas portas poderem permanecer abertas, precisamente por ser uma igreja onde se reza continuamente [vi].

Orar diante da Eucaristia.

"Também posso rezar no bosque, mergulhado na natureza".

É claro que se pode. Mas se só se pudesse rezar assim, a iniciativa da oração estaria totalmente dentro de nós: Deus seria pouco mais do que um postulado do nosso pensamento. Que Ele responda ou queira responder, permaneceria uma questão em aberto. [...] Em contrapartida, a Eucaristia significa: Deus respondeu. A Eucaristia é Deus como resposta, como presença que responde. Agora, a iniciativa da relação divino-humana já não depende de nós, mas dEle, e assim se torna verdadeiramente séria.

Por isso, a oração atinge um nível inteiramente novo no âmbito da adoração eucarística; só agora envolve as duas partes, só agora é séria. Mais ainda, não envolve apenas as duas partes, mas só agora se torna plenamente universal: quando rezamos na presença da Eucaristia, nunca estamos sós. Connosco reza toda a Igreja que celebra a Eucaristia [...].
Nessa oração, já não estamos diante de um Deus pensado, mas diante de um Deus que verdadeiramente se entregou a nós; diante de um Deus que se fez comunhão connosco, e assim nos liberta dos nossos limites e nos conduz à Ressurreição. Esta é a oração que devemos voltar a buscar [vii].

Culto eucarístico.

O culto é tomar consciência da queda [do pecado original], é, por assim dizer, o instante do arrependimento do filho pródigo, o voltar-o-olhar-para-a-origem. Na medida em que, segundo muitas filosofias, o conhecimento e o ser coincidem, o facto de se voltar o olhar para o Princípio constitui também, e ao mesmo tempo, uma nova ascensão para Ele. [...]

Desde [o momento em que tiveram lugar] a Cruz e a Ressurreição de Jesus, a Eucaristia é o ponto de encontro de todas as linhas da Antiga Aliança, e até da História das religiões em geral: o culto verdadeiro, sempre esperado e que sempre supera as possibilidades humanas, a adoração em espírito e verdade. [...]

Que ninguém diga agora: a Eucaristia existe para ser comida, não para ser adorada.

Como sublinham uma e outra vez as tradições mais antigas, não é de forma alguma um pão corrente. Comê-la é um processo espiritual que abarca toda a realidade humana.

Comer Cristo significa adorar a Cristo. Comê-lo significa deixá-lo entrar em mim de modo que o meu "eu" seja transformado e se abra ao grande "nós", de maneira que cheguemos a ser um só com Ele. Desta forma, a adoração não se opõe à comunhão nem se situa paralelamente a ela. A comunhão só atinge toda a sua profundidade se estiver sustentada e compreendida pela adoração. A presença eucarística no tabernáculo não cria outro conceito da Eucaristia paralelo ou oposto à celebração eucarística, antes constitui a sua plena realização [viii].

Eucaristia e sacrifício.

A Eucaristia é sacrifício. Ao ouvirmos esta frase, experimentamos resistência no nosso íntimo. Levanta-se a pergunta: Quando falamos de sacrifício, não estaremos formando uma imagem indigna, ou pelo menos ingénua, de Deus? Não acabaremos pensando que nós, os homens, podemos e até devemos dar algo a Deus?

A Eucaristia responde precisamente a essas questões. A primeira coisa que nos diz é que Deus se entrega a nós para que nós possamos, por nossa vez, dar-nos a Ele. No sacrifício de Jesus Cristo, a iniciativa vem de Deus. No começo, foi Ele quem se abaixou primeiro. [...]

Cristo não é uma oferenda que nós, os homens, apresentamos a um Deus irritado; pelo contrário, o facto de Ele estar aqui, de viver, sofrer e amar, já é obra do amor de Deus [...].
É o amor misericordioso de Deus que se abaixa até nós; é o Senhor quem se faz a si mesmo servo por nós. Embora sejamos nós que causamos o conflito, e embora o culpado não seja Deus, mas nós, é Ele quem vem ao nosso encontro e quem, em Cristo, pede a reconciliação [...].

Quanto mais andamos com Ele, mais conscientes nos tornamos de que o Deus que parece atormentar-nos é na verdade o único que nos ama realmente e o único a quem podemos abandonar-nos sem resistência nem medo. [...]
Quanto mais penetramos na noite desse mistério incompreendido, mais confiamos nEle, mais o encontramos, mais descobrimos o amor e a liberdade que nos sustentam em todas as outras noites. Deus dá para que nós possamos dar esta é a essência do sacrifício eucarístico, do sacrifício de Jesus Cristo [ix].


Apostolado


Fé e apostolado.
Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida: nestas palavras de Cristo segundo o Evangelho de João (14, 6) está expressa a pretensão fundamental da fé cristã.

Desta pretensão brota o impulso missionário da fé: se a fé cristã é a verdade, diz respeito a todos os homens. Se fosse apenas uma variante cultural das experiências religiosas do homem, cifradas em símbolos e nunca decifradas, então faria bem em permanecer na sua cultura e deixar as outras em paz [x].

Fui Eu que vos escolhi e vos destinei para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça (Jo 15, 16). Aqui aparece o dinamismo da existência do cristão, do apóstolo: Escolhi-vos para que vades... Devemos animar-nos nesta santa inquietação: a inquietação de levar a todos o dom da fé, da amizade com Cristo. Em verdade, o amor, a amizade de Deus foram-nos dados para que chegue também aos outros.

Recebemos a fé para dá-la aos outros - somos sacerdotes para servir os outros. E devemos dar um fruto que permaneça.

Todos os homens querem deixar um rasto que permaneça. Mas o que é que permanece?

O dinheiro, não. Os edifícios, também não; e muito menos os livros. Após um certo tempo, mais ou menos longo, todas essas coisas desaparecem. A única coisa que permanece eternamente é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade.

O fruto que permanece é, portanto, aquilo que semeamos nas almas humanas - o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor.

Então vamos e rezemos ao Senhor para que nos ajude a dar fruto, um fruto que permaneça. Somente assim a terra se transforma, de vale de lágrimas, em jardim de Deus [xi].

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





Notas:
[i] El espíritu de Ia liturgia
[ii] O sal da terra, págs. 22-23
[iii] Homilia no funeral de Luigi Giussani, em L’Osservatore Romano, 06.10.2002
[iv] Dios y el mundo
[v] Via-sacra no Coliseu, Apresentação.
[vi] IlDio Vicino
[vii] Ibid
[viii] El espíritu de Ia liturgia
[ix] Il Dio Vicino
[x] Fe, verdad y cultura
[xi] Homilia da Missa Pro Eligendo Pontífice, Vaticano, 18.04.2005