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Temas para meditar - 186

Domínio

Por mais louvável que pareça o domínio da alma sobre o corpo e o domínio da razão sobre os vícios, se tanto a alma como a razão não estão submetidas a Deus como Ele ordena que devem estar, de modo nenhum é correcto o domínio sobre o corpo e os vícios. (…) Mas até as virtudes que ela julga ter e pelas quais domina o corpo e os vícios, seja qual for o bem que ela se propõe adquirir ou conservar, se as não referir a Deus, até essas virtudes são mais vícios que virtudes.


(santo agostinhoA Cidade de Deus, Fund. C. Gulbenkian, Vol. III, Livro XIX, Cap. XXV, nr. 1959)

Jesus Cristo e a Igreja - 24

Quem eram os fariseus, saduceus, essénios e zelotes?

diversas sensibilidades acerca das fontes e dos modos de viver a religião de Israel.
No tempo de Jesus, os mais apreciados pela maioria do povo eram os fariseus. O seu nome, em hebraico perushim, significa «os segregados».
Dedicavam toda a sua atenção às questões relativas à observância das leis de pureza ritual, inclusivamente fora do templo. As normas de pureza sacerdotal, estabelecidas para o culto, passaram a marcar para eles um ideal de vida, em todas as acções da vida quotidiana, que ficava assim ritualizada e sacralizada.
A par da Lei escrita (Torá ou Pentateuco), foram recompilando uma série de tradições e modos de cumprir as prescrições da Lei, às quais se concedia cada vez mais importância até chegarem a ser recebidas como Torá oral, atribuída também a Deus.
Segundo as suas convicções, essa Torá oral foi entregue, juntamente com a Torá escrita, a Moisés no Sinai, e portanto ambas tinham idêntica força vinculativa.
Para una parte dos fariseus a dimensão política desempenhava uma função decisiva no seu posicionamento vital, e estava ligada ao empenho pela independência nacional, pois nenhum poder alheio podia impor-se à soberania do Senhor sobre o seu povo. Estes são conhecidos pelo nome de zelotes, que possivelmente se deram a si mesmos, aludindo ao seu zelo por Deus e pelo cumprimento da Lei. Ainda que pensassem que a salvação é concedida por Deus, estavam convencidos de que o Senhor contava com a colaboração humana para trazer essa salvação. Essa colaboração manifestava-se ao princípio num âmbito puramente religioso, no zelo pelo cumprimento estrito da Lei. Mais tarde, a partir da década dos cinquenta, consideravam que também havia de manifestar-se no âmbito militar, pelo que não se podia recusar o uso da violência quando esta fosse necessária para vencer, nem havia que ter medo de perder a vida em combate, que era como um martírio para santificar o nome do Senhor.
Os saduceus por seu lado, eram pessoas da alta sociedade, membros de famílias sacerdotais, cultos, ricos e aristocratas. Dentre eles tinham saído desde o início da ocupação romana os sumos-sacerdotes que, nesse momento, eram os representantes judeus perante o poder imperial. Faziam uma interpretação muito sóbria da Torá, sem cair nas numerosas questões casuísticas dos fariseus, e portanto subestimando o que aqueles consideravam Torá oral.
Ao contrário dos fariseus, não acreditavam na vida depois da morte, nem compartilhavam as suas esperanças escatológicas. Não gozavam da popularidade nem do afecto popular que desfrutavam os fariseus, mas tinham poder religioso e político, pelo que eram muito influentes.
Um dos grupos mais estudados nos últimos anos tem sido o dos essénios. Temos ampla informação acerca de como viviam e quais eram as suas crenças através de Flávio Josefo, e sobretudo através dos documentos em papiro e pergaminho encontrados em Qumran, onde parece que se instalaram alguns deles.

Uma característica específica dos essénios consistia no repúdio do culto que se fazia no templo de Jerusalém, já que era realizado por um sacerdócio que se tinha envilecido desde a época dos asmoneus.
Por isso, os essénios optaram por segregar-se dessas práticas comuns para conservar e restaurar a santidade do povo num âmbito mais reduzido, o da sua própria comunidade. O afastamento de muitos deles para zonas desérticas tem por fim excluir a contaminação que poderia advir do contacto com outras pessoas. A renúncia a manter relações económicas ou a aceitar ofertas não deriva de um ideal de pobreza, tratando-se antes de um modo de evitar contaminação com o mundo exterior, para salvaguardar a pureza ritual. Consumada a sua ruptura com o templo e o culto oficial, a comunidade essénia vê-se a si mesma como um templo imaterial, que substitui transitoriamente o templo de Jerusalém enquanto nele se continue a realizar um culto que consideram indigno.

© www.opusdei.org - Textos elaborados por uma equipa de professores de Teologia da Universidade de Navarra, dirigida por Francisco Varo.


Tratado da lei 65

Questão 102: Das causas dos preceitos cerimoniais.

Art. 5 — Se se podem dar causas convenientes aos sacramentos da lei antiga.

(III, q. 70, a. 1, 3; Ad Bom., cap. IV, lect. II; I Cor., cap. V, lect. II).

O quinto discute-se assim. — Parece que não se podem dar causas convenientes aos sacramentos da lei antiga.

1. — Pois, o que se fazia para o culto divino não devia ser semelhante ao que observavam os idólatras. Donde o dizer a Escritura (Dt 12, 31): Não farás assim com o Senhor teu Deus; porque eles fizeram pelos seus deuses todas as abominações, que o Senhor aborrece. Ora, os adoradores dos ídolos, ao adorá-los, cortavam-se com canivetes até a efusão do sangue, como refere a Escritura (1 Rs 18, 28), que se retalhavam, segundo o seu costume, com canivetes e lancetas, até se cobrirem de sangue. Pelo que o Senhor mandou (Dt 14, 1): Não fareis incisões, nem vos fareis abrir calva para chorardes algum morto; porque és um povo santo para com o Senhor teu Deus, e ele te escolheu, dentre todas as nações que há na terra para serdes particularmente o seu povo. Logo, a circuncisão era inconvenientemente instituída pela lei.

2. Demais. — O que se faz para o culto divino deve ter dignidade e gravidade, conforme a Escritura (Sl 34, 18): No meio do povo numeroso te louvarei. Ora, implica uma certa leviandade o comer-se apressadamente. Logo, é um preceito inconveniente o de comer apressadamente o cordeiro pascal. E também se fizeram certas instituições sobre o modo de comer esse cordeiro, que parecem totalmente irracionais.

3. Demais. — Os sacramentos da lei antiga são figuras dos da nova. Ora, o cordeiro pascal significa o sacramento da Eucaristia, conforme a Escritura (1 Cor 5, 7): Cristo, que é a nossa Páscoa, foi imolado. Logo, também a lei devia ter alguns sacramentos que prefigurassem outros da lei nova, como, a confirmação, a extrema-unção, o matrimónio e os outros sacramentos.

4. Demais. — Só se pode fazer purificação do que constitui imundície. Ora, para Deus, nada é imundo, porque todo corpo é criatura sua; e toda a criatura de Deus é boa, e não é para desprezar nada do que se participa com acção de graças, como diz a Escritura (1 Tm 4, 4). Logo, era inconveniente que se purificassem, por causa do contacto com um homem morto, ou com qualquer infecção corporal semelhante.

5. Demais. — A Escritura diz (Sr 34, 4): Que coisa será alimpada por um imundo? Ora, a cinza da vaca vermelha queimada era imunda, porque tornava imundo. Pois, como diz a Escritura (Nm 19, 7 ss), o sacerdote que a imolava ficava imundo até à tarde. Do mesmo modo, o que a queimava e quem lhe ajuntava as cinzas. Logo, era um preceito inconveniente que, com essa cinza aspergida, os imundos se purificassem.

6. Demais. — O pecado não é nada de material, que possa ser levado de um lugar para outro; nem pode o homem purificar-se dele por meio do que é imundo. Logo, era inconveniente, para a expiação dos pecados do povo, que o sacerdote confessasse sobre um bode os pecados dos filhos de Israel, para que os levasse para o deserto. E por outro bode, que os sacerdotes imolavam, para as purificações, e era queimado juntamente com um novilho, fora do arraial se tornassem imundos, de modo que precisassem lavar as vestes e o corpo com água.

7. Demais. — O que já está limpo não precisa ser de novo purificado. Logo, era inconveniente que ao homem ou a casa, purificados da lepra, se impusesse outra purificação.

8. Demais. — A imundície espiritual não podia ser limpa pela água material ou pela raspagem dos pelos. Logo, era irracional o Senhor ter ordenado se fizesse uma bacia de bronze com sua base, para lavatório das mãos e dos pés dos sacerdotes, que houvessem de entrar no tabernáculo. Bem como também o era, que se mandasse aos levitas lavarem-se com a água da expiação, e rasparem todos os pelos do corpo.

9. Demais. — O mais não pode santificar-se pelo menos. Logo, era inconveniente que, na lei, se fizesse a consagração dos sacerdotes maiores e menores, e dos levitas por unção, sacrifícios e oblações corpóreas.

10. Demais. — Como diz a Escritura (1 Sm 16, 7) o homem vê o que está patente, mas o Senhor olha para o coração. Ora, o que é exteriormente patente, no homem, é a disposição corpórea e também as vestes. Logo, era inconveniente que se destinassem aos sacerdotes, maiores e menores, certas vestes especiais, que refere a Escritura (Ex 28). E parece sem razão que alguém fosse impedido de ser sacerdote, por causa de defeitos corpóreos, conforme se diz (Lv 21, 17): O homem de qualquer das famílias da tua linhagem que tiver deformidade não oferecerá pães ao seu Deus; nem se for cego, se coxo, etc. Por onde se conclui, que os sacramentos da lei antiga eram irracionais.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Lv 20, 8): Eu sou o Senhor que vos santifico. Ora, Deus não faz nada sem razão, conforme o salmo (Sl 103, 24): Todas as coisas fizeste com sabedoria. Logo, nos sacramentos da lei antiga, que se ordenavam à santificação dos homens, nada havia sem causa racional.

Como já dissemos (q. 101, a. 4), chamavam-se sacramentos propriamente às coisas atribuídas aos sacerdotes de Deus para alguma consagração, por meio de quem, elas, de certo modo, se destinavam ao culto divino. Ora, o culto de Deus, de maneira geral, pertencia a todo o povo; mas, de modo especial, aos sacerdotes e levitas, que eram os seus ministros. Por isso, nos sacramentos da lei antiga, certas disposições pertenciam comumente a todo o povo; e certas outras, especialmente, aos ministros. E em relação a ambos, três coisas eram necessárias. — A primeira, que cada um fosse posto em estado de adorar a Deus, o que em geral todos faziam pela circuncisão, sem a qual ninguém era admitido a nenhuma das cerimónias legais; e quanto aos sacerdotes, pela consagração. — Em segundo lugar, era exigido o uso daquilo que pertencia ao culto divino. Por isso o povo fazia o banquete pascal, ao qual não era admitido nenhum incircunciso, como se vê na Escritura (Ex 12, 43 ss). E os sacerdotes faziam a oblação das vítimas, comiam o pão da proposição, e o mais para o que eram destinados. — Por fim, exigia-se a remoção do que impedia o culto divino, i. é, das imundícies. E assim, para o povo, instituíram-se certas purificações de determinadas imundícies exteriores, e também expiações dos pecados. Para os sacerdotes e levitas instituiu-se a oblação das mãos, dos pés e a raspagem dos pelos. — E tudo isto tinha causas racionais literais, porque se ordenava ao culto de Deus, naquele tempo; e figuradas, porque se ordena a figurar Cristo, como ficará claro por um exame minucioso.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A razão literal da circuncisão, e a principal, era ser um protesto de fé na unidade de Deus. E como Abraão foi o primeiro, que se separou dos infiéis, saindo da sua casa e da sua parentela, foi o primeiro a receber a circuncisão. E nessa causa toca o Apóstolo (Rm 4, 9 ss): Recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que está no prepúcio; porque, como nesse mesmo lugar se lê, pela fé de Abraão foi-lhe imputada a justiça, porque creu em esperança contra a esperança, i. é, contra a esperança da natureza, na esperança da graça, para que se tornasse pai de muitas gentes; pois era velho e velha também e estéril a sua esposa. E para que esse protesto e imitação da fé de Abraão se firmasse nos corações dos judeus, recebiam na carne um sinal que não pudessem esquecer. Donde a Escritura (Gn 17, 13): Este meu pacto será na vossa carne para concerto eterno. E, por isso fazia-se no oitavo dia, porque, antes, a criança é muito tenra e podia causar-lhe mal grave, por ser considerada como algo de ainda não consolidado. Razão por que nem os animais eram oferecidos antes do oitavo dia. E não se deixava a circuncisão para mais tarde, a fim de que, por causa da dor, não se lhe quisesse fugir ao sinal; e também a fim de que os pais, cujo amor para com os filhos vai aumentando com a convivência continuada e com o crescimento deles, não quisessem subtraí-los a ela. — A segunda razão podia ser o enfraquecimento da concupiscência no membro circunciso. — A terceira o escárnio dos sacrifícios a Vénus e a Priapo, nos quais era honrada essa parte do corpo. — Mas o Senhor não proibiu senão a incisão, que se fazia no culto dos ídolos, ao que não se assemelhava a circuncisão de que se trata.

A razão figurada da circuncisão é simbolizar que Cristo poria termo à corrupção; o que faria completa e perfeitamente na oitava idade, que é a dos ressurrectos. E como toda corrupção da culpa e da pena tem em nós origem carnal, proveniente do pecado do primeiro pai, a circuncisão fazia-se no membro da geração. Donde o dizer o Apóstolo (Cl 2, 11): Estais circuncidados em Cristo de circuncisão não feita por mão de homem no despojo do corpo da carne, mais sim na circuncisão de Cristo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A razão literal do banquete pascal era a comemoração do benefício, de Deus ter tirado os judeus do Egipto; por isso, com a celebração desse banquete, confessavam constituir o povo que Deus para si tirara do Egipto. Mas, quando foram libertados, foi-lhes dado como preceito untarem a padieira nas casas, significando isso um como protesto que não aceitavam os ritos dos egípcios, que adoravam um carneiro. Por isso ficaram livres, pela aspersão do sangue do cordeiro, ou por untarem os limiares das casas, do perigo de extermínio, iminente para os egípcios. Ora, a saída dos judeus do Egipto realizou-se com as duas circunstâncias seguintes. Com pressa no andar, porque os egípcios os apertavam a saírem velozmente, como se lê na Escritura (Ex 12, 33); e era iminente o perigo a quem não se apressasse em sair com o povo, pois ficando, seria morto pelos egípcios. Essa pressa era significada, de dois modos. Pelo que comiam; pois tinham como preceito comerem pães ázimos, em sinal de que os egípcios lhes tinham dado tanta pressa a partir que não puderam meter-lhes o fermento. E também por comerem o cordeiro assado ao fogo, porque assim era preparado mais rapidamente; e por não o despedaçarem, porque na pressa, não havia tempo de quebrar os ossos. De outro modo, quanto à maneira de comer. Assim, diz a Escritura: cingireis os vossos rins, e tereis sapatos nos pés e bordões nas mãos, e comereis à pressa, o que manifestamente designa homens que faziam caminho rápido. E o mesmo fim visava o outro preceito: Há-de comer-se em cada casa, nem das suas carnes tirareis nada para fora; porque, pela pressa, não havia tempo de fazer brindes uns aos outros. Quanto às amarguras, que sofreram no Egito, eram simbolizadas pelas alfaces agrestes. As razões figuradas são claras. A imolação do cordeiro pascal significa a de Cristo, conforme a Escritura (1 Cor 5, 7): Cristo, que é a nossa Páscoa, foi imolado. O sangue do cordeiro, que livrava do extermínio, untado nas padieiras das casas, significa a fé na paixão de Cristo, no coração e na boca dos fiéis. Por ela nos libertamos do pecado e da morte, conforme a Escritura (1 Pd 1, 18): Fostes redimidos pelo precioso sangue do cordeiro imaculado. Comiam-lhe a carne para significar que comemos a carne do corpo de Cristo no sacramento. Eram assadas ao fogo para significar a paixão ou a caridade de Cristo. Comiam-nas com pães ázimos para significar a pureza do banquete dos fiéis, que comem o corpo de Cristo, segundo a Escritura (1 Cor 5, 8): Solenizemos o nosso convite, com os ázimos da sinceridade e da verdade. Acrescentavam as alfaces agrestes; em sinal da penitência dos pecadores, necessária aos que recebem o corpo de Cristo. Os rins devem ser cingidos com o cinto da castidade. Os sapatos dos pés são a imagem dos patriarcas mortos. O báculo, que deviam ter nas mãos, significa a custódia pastoral. Também se mandava comessem numa casa o cordeiro pascal, i. é, na Igreja dos Católicos e não, nos conventículos dos heréticos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Certos sacramentos da lei nova correspondem, figuradamente, a outros da lei antiga. Assim, à circuncisão corresponde o baptismo, que é o sacramento da fé. Por isso, diz a Escritura (Cl 2, 11-12): Vós estais circuncidados na circuncisão de N. S. Jesus Cristo, estando sepultados juntamente com ele no baptismo. Ao banquete do cordeiro pascal corresponde, na lei nova, o sacramento da Eucaristia. A todas as purificações da lei antiga, o sacramento da penitência. A consagração do pontífice e dos sacerdotes, ao sacramento da ordem. Ao sacramento da confirmação, que implica a plenitude da graça, nenhum sacramento da lei antiga podia corresponder, pois, ainda não chegara o tempo da plenitude, porque, a lei não levou ninguém à perfeição. O mesmo se dá com o da extrema-unção, que é uma preparação imediata para a entrada na glória, cujo adito ainda não fora franqueado na lei antiga, porque o resgate ainda não tinha sido pago. O matrimónio estava, igualmente, compreendido na lei antiga, enquanto pertencente à lei da natureza; mas não, enquanto sacramento significativo da união de Cristo e da Igreja, ainda não realizada. Por isso, na lei antiga, dava-se libelo de repúdio, que encontra a essência desse sacramento.

RESPOSTA À QUARTA. — Como já se disse, as purificações da lei antiga ordenavam-se a remover os impedimentos do culto divino. Este era duplo: o espiritual, que consistia na elevação da mente para Deus; e o corpóreo, consistente nos sacrifícios, nas oblações e coisas semelhantes. — Ora, do culto espiritual, os homens ficavam privados pelo pecado, que, como se pensava, os poluía; assim, pela idolatria e pelo homicídio, pelos adultérios e incestos. E dessas manchas se purificavam por certos sacrifícios, ou oferecidos, em geral, por todo o povo, ou mesmo pelos pecados de cada um. Não que esses sacrifícios carnais tivessem por si mesmos a virtude de expiar o pecado. Mas porque significam a futura expiação dos pecados por Cristo, de que os antigos eram participantes, protestando a fé no Redentor, em figuras de sacrifícios.

Do culto externo os homens ficavam privados por certas imundícies corpóreas. Estas eram, primeiro, consideradas em relação a eles próprios, e, consequentemente, em relação às vestes, às casas e aos vasos. Essas imundícies provinham, em parte, dos próprios homens; em parte, do contacto com coisas imundas. Quanto às primeiras, era considerado imundo o que já tinha alguma corrupção ou a alguma estava exposto. Por isso, sendo a morte uma corrupção, o cadáver de um homem era considerado imundo. Do mesmo modo, como a lepra provém da corrupção dos humores, que também irrompem para fora e contaminam os outros, os leprosos eram considerados imundos. Semelhantemente, as mulheres que sofriam de fluxo de sangue, por doença, ou também por natureza, ou no tempo do mênstruo, ou, ainda, no da concepção. E pela mesma razão os homens eram considerados imundos, que sofriam de fluxo seminal, quer por doença, quer por polução noturna, ou ainda, pelo coito. Pois, toda a umidade saída do homem, desses modos sobreditos, implicava infecção imunda. Também eles contraíam uma certa imundície pelo contacto com determinadas coisas imundas.

Ora, dessas imundices podem-se assinalar razão literal e figurada. — A literal era a reverência ao que pertencia ao culto divino; quer porque os homens não costumavam tocar nas coisas preciosas, quando imundos, quer porque o raro acesso às coisas sagradas as tornava mais veneradas. Pois, como ninguém podia, senão raramente, acautelar-se contra todas essas imundícies, acontecia que só raramente podiam tocar nas coisas pertencentes ao culto divino; e assim, quando se lhes achegavam, faziam-no com maior reverência e humildade da mente. — Cer­tas dessas imundices também tinham, como razão literal, fazer com que os homens não temessem chegar-se ao culto divino, fugindo à sociedade dos leprosos e semelhantes enfermos, cuja doença era abominável e contagiosa. — De algumas outras a razão era fazer evitar o culto da idolatria; porque os gentios, no rito dos seus sacrifícios, empregavam às vezes o sangue e o sémen humanos. — Mas, todas essas imundícies corpóreas se purificavam, ou só pela aspersão da água, ou, quando eram maiores, por algum sacrifício para expiar o pecado, donde provinham as tais enfermidades.

A razão figurada é que, dessas imundícies as externas figuram diversos pecados. Assim, a de um cadáver, significa a do pecado, que é a morte da alma. A da lepra, a da doutrina herética, quer porque esta é contagiosa como aquela; quer porque não há nenhuma falsa doutrina que não vá mesclada com alguma verdade; assim como também, na superfície do corpo do leproso, aparece uma certa distinção entre as manchas e a carne sã. A imundice da mulher que sofre fluxo de sangue significa a da idolatria, por causa do cruor da imolação. A do homem com fluxo seminal, a do vanilóquio, porque sémen é a palavra de Deus. A do coito e a da mulher que deu à luz, a do pecado original. A da mulher menstruada, a da mente embotada pelos prazeres. E em geral, a imundície do contacto com coisa imunda designa a do consentimento no pecado de outrem, conforme a Escritura (2 Cor 6, 17): Saí do meio deles, e separai-vos dos tais e não toqueis o que é imundo.

E essa imundície do contacto atingia também as coisas inanimadas; pois, tudo o que, de qualquer modo, o imundo tocava, ficava imundo. No que a lei atenuou a superstição dos gentios, que consideravam contraída a imundice, não só pelo contacto com o imundo, mas também pelo colóquio ou pela vista, como refere o Rabbi Moisés, sobre a mulher menstruada. E isto misticamente significava o que diz a Escritura (Sb 14, 9): Deus igualmente aborrece ao ímpio e à sua impiedade.

Havia também uma certa imundície das coisas inanimadas em si mesmas, como era a da lepra, na casa e nas vestes. Pois, assim como a doença da lepra procede, no homem, do humor corrupto, que putrefaz e corrompe a carne, assim também, por uma certa corrupção e excesso de umidade ou de secura, opera-se uma certa corrupção nas pedras da casa, ou ainda nas vestes. Por isso a lei chama lepra a essa corrupção, que fazia considerar imunda uma casa ou a roupa. Quer, porque toda corrupção implica imundície, como se disse; quer também porque, para evitar tais corrupções, os gentios prestavam culto aos deuses Penates. Por isso a lei mandava destruir a casa em que tal corrupção perseverasse, e que as vestes fossem queimadas, para evitar a ocasião da idolatria. Havia também uma imundície própria dos vasos, da qual diz a Escritura (Nm 19, 15): O vaso que não tiver tapadura nem atadura sobre si, será imundo. E a causa dessa imundície era que, em tais vasos, podia facilmente cair algo de imundo que os contaminasse. Também tinha esse preceito por fim evitar a idolatria. Pois, os idólatras acreditavam, que se ratos, lagartos ou outros animais semelhantes, que imolavam aos deuses, caíssem nos vasos ou nas águas, estes lhes seriam gratos. E também algumas mulheres do povo deixavam os vasos descobertos em obséquio às divindades a que chamavam Ianas.

A razão figurada dessas imundícies é a seguinte. A lepra na casa significa a imundice da reunião dos heréticos; a no vestido de linho, a perversidade dos costumes, pela amargura da mente; a na roupa de lã, a perversidade dos aduladores; a na urdidura, os vícios da alma; a na trama, os pecados carnais, pois, assim como a urdidura está na trama, assim, a alma, no corpo. O vaso sem tapadura nem atadura, o homem sem qualquer velame de taciturnidade, ou o que não é constrangido por nenhuma correcção da disciplina.

RESPOSTA À QUINTA. — Como já se disse (a. 4), a lei considerava dupla imundície. Uma, proveniente de corrupção da mente ou do corpo, e esta era a maior. A outra, do só contacto com o imundo, e era a menor e expiável com rito mais fácil. Pois, a primeira era expiada por meio dos sacrifícios pelo pecado; porque toda corrupção procede deste e o significa. Ao passo que a segunda o era só pela aspersão de uma alguma água de expiação, de que fala a Escritura (Nm 19).

Pois, nesse lugar, o Senhor manda que tomassem uma vaca vermelha, em memória do pecado, que cometeram quando adoraram o bezerro. E diz uma vaca, e não um bezerro, porque, assim costumava chamar à sinagoga, conforme (Os 4, 16): Israel se desencaminhou como uma vaca que não pode sofrer o jugo. E isto talvez porque adoravam as vacas, seguido o costume do Egipto, conforme o lugar da Escritura (Os 10, 5): Adoravam as vacas de Bethaven. — E para fazer detestar o pecado da idolatria, era imolada fora do arraial. E onde quer que se fizesse o sacrifício expiatório da multidão dos pecados, toda ela era queimada fora do arraial. — E como se quisesse significar, por esse sacrifício, que o povo ficava limpo da totalidade dos pecados, o sacerdote molhava o dedo no sangue dela e fazia com ele sete aspersões, voltado para a porta do tabernáculo. E essa própria aspersão do sangue era para fazer detestar a idolatria, na qual o sangue da imolação não era espalhado, mas reunido, e em redor dele, os homens comiam em honra dos ídolos. — A vaca era, além disso, queimada no fogo, quer porque Deus, no fogo, apareceu a Moisés, e no mesmo foi dada a lei; quer para significar que se devia extirpar totalmente a idolatria e tudo o que a ela pertencia; assim como da vaca eram consumidos na chama tanto a pele e as carnes como o sangue e o excremento. — E acrescentava-se, na combustão, pau de cedro, hissopo, escarlata duas vezes tinta, para significar que, como o pau de cedro não apodrece facilmente, e a escarlata duas vezes tinta não perde a cor, e o hissopo conserva o cheiro, ainda depois de estar dessecado; assim também esse sacrifício era pela conservação do povo, e da sua honestidade e devoção. Por isso, diz a Escritura, das cinzas da vaca: Para que as guarde a multidão dos filhos de Israel. Ou, segundo Josefo, nesse sacrifício simbolizavam-se os quatro elementos. Punha-se o cedro no fogo para significar a terra, por causa da sua fixidez no solo; o hissopo, pelo seu cheiro, significava o ar; a escarlata duas vezes tinta, a água, pela mesma razão por que também a significava a púrpura, por causa da tinta, que se faz com água. De modo que tudo isto significava, que se oferecia ao Criador o sacrifício dos quatro elementos. E como esse sacrifício era oferecido para fazer detestar o pecado da idolatria, eram considerados imundos tanto o que queimou, como o que recolheu as cinzas e o que fazia a aspersão da água misturada com a cinza. Isto porque tudo o atinente, de certo modo, à idolatria devia ser rejeitado como imundo. E dessa imundice se purificavam pela só ablução das vestes. Nem era necessário que fizessem aspersão da água, porque então o processo iria ao infinito. Pois, o que aspergia a água tornava-se imundo e então, aspergindo-se a si mesmo, continuaria imundo; mas quem o aspergisse também ficaria imundo; e semelhantemente, quem a este aspergisse, e assim ao infinito.

A razão figurada desse sacrifício é que a vaca vermelha significa a Cristo, por causa da natureza humana enferma, de que se revestiu, designada pelo sexo feminino da vaca. A cor desta designa o sangue da paixão. A vaca vermelha estava na força da idade, porque toda obra de Cristo é perfeita. Não tinha nenhum defeito e não tinha ainda levado o jugo, porque Cristo é inocente, nem levou o jugo do pecado. Devia ser levada a Moisés, porque lhe imputavam a transgressão da lei mosaica quanto à violação do sábado. Devia ser entregue ao sacerdote Eleazar, porque Cristo, condenado à morte, foi entregue nas mãos dos sacerdotes. Era imolada fora do arraial porque Cristo padeceu fora de portas. O sacerdote tingia o dedo no sangue dela, porque o mistério da paixão de Cristo deve ser meditado e imitado com sabedoria, significada pelos dedos. O sacerdote fazia aspersão voltado para o tabernáculo, para significar a sinagoga, quer para a condenação dos judeus incrédulos, quer para a purificação dos crentes. E isto sete vezes, por causa dos sete dons do Espírito Santo, ou dos sete dias, que simbolizam todos os tempos. Também tudo o que aludia à encarnação de Cristo devia ser queimado no fogo, i. é, espiritualmente entendido. Assim, a pele e a carne significam as obras externas de Cristo; o sangue, a virtude subtil e interior, vivificante das obras externas; o excremento, a lassidão, a sede e tudo o mais próprio à fraqueza. Acrescentavam-se ainda três coisas, a saber: o cedro, para significar a sublimidade da esperança, ou da contemplação; o hissopo, símbolo da humildade ou da fé; a escarlata duas vezes tinta, da dupla caridade. Pois, por essas virtudes devemos unir-nos com a paixão de Cristo. A cinza da combustão era recolhida por um homem limpo, porque os resultados da paixão aproveitaram aos gentios, que não foram culpados da morte de Cristo. Era posta na água da expiação, porque pela paixão de Cristo o baptismo produz o efeito de purificar dos pecados. O sacerdote, que imolava e queimava a vaca, e aquele que a queimava, e o que lhe recolhia as cinzas, ficavam imundos, bem como o que fazia aspersão da água. Isso, quer porque os judeus ficaram imundos por terem morto a Cristo, que expiou os nossos pecados; e até à tarde, i. é, até o fim do mundo, quando o que restar de Israel se converterá. Ou porque os que tratam as coisas santas, procurando a purificação dos outros, eles próprios também contraem certas imundícies, como diz Gregório; e isto até à tarde, i. é, até ao fim da vida presente.

RESPOSTA À SEXTA. — Como já se disse, a imundície proveniente da corrupção da mente ou do corpo era expiada pelos sacrifícios pelo pecado. E ofereciam-se sacrifícios especiais pelos pecados de cada um. Ora, alguns eram negligentes em expiar tais pecados e imundícies; ou deixavam de o fazer por ignorância. Por isso, foi instituído que, uma vez por ano, no dia dez do sétimo mês, se fizesse um sacrifício expiatório por todo o povo. E porque, no dizer do Apóstolo (Heb 7, 28), a lei constitui sacerdotes a homens que têm enfermidade, era necessário que o sacerdote oferecesse primeiro por si mesmo o bezerro, pelo pecado, em lembrança do que Aarão cometeu ao fundir o bezerro de ouro. E um carneiro em holocausto, para significar que a escolha do sacerdote, significado pelo carneiro, chefe do rebanho, devia ordenar-se à honra de Deus. — Em seguida o sacerdote oferecia, pelo povo, dois bodes. Um era imolado para expiar o pecado do povo. Porque o bode é um animal fétido e, da sua pele, fazem-se vestes que picam o corpo; o que significa o mau cheiro, a imundície e o aguilhão dos pecados. O sangue do bode imolado era conduzido, junto com o do bezerro, ao Santo dos Santos, e com ele se aspergia todo o santuário, para significar que o tabernáculo era purificado das imundícies dos filhos de Israel. O corpo do bode e o do bezerro, imolados pelo pecado, deviam ser queimados, para significar a consumpção dos pecados. Não porém no altar, onde só se queimavam totalmente os holocaustos. Por isso, era ordenado que fossem queimados fora do arraial, em detestação dos pecados; e isto fazia-se sempre que era imolada a vítima do sacrifício por algum pecado grave, ou pela multidão deles. — O outro bode era mandado para o deserto, não, certo, para ser oferecido aos demónios, que aí os gentios adoravam, porque não era lícito imolar-lhes nada; mas, para significar o efeito da imolação da vítima desse sacrifício. Por isso, o sacerdote impunha-lhe a mão sobre a cabeça, confessando os pecados dos filhos de Israel; e então o bode era mandado para o deserto, para ser comida das feras, como sofrendo a pena pelos pecados do povo. E consideravam-­no como carregando esses pecados, quer porque ser ele mandado para o deserto significasse a remissão de tais pecados; quer porque se lhe ligava à cabeça algum bilhete, onde estes estavam escritos.

A razão figurada desses sacrifícios é significar a Cristo. O bezerro significa-lhe a virtude; o carneiro, que é chefe dos fiéis; o bode, a sua semelhança da carne do pecado. E o próprio Cristo foi imolado pelo pecado dos sacerdotes e do povo, porque, pela sua paixão, tanto os grandes como os pequenos são limpos do pecado. O sangue do bezerro e do bode era introduzido no Santo pelo pontífice, porque o sangue da paixão de Cristo nos abriu a porta do reino dos céus. Os corpos desses animais eram queimados fora do arraial, porque Cristo padeceu fora de portas; como diz o Apóstolo (Heb 13, 12). Quanto ao bode emissário, podia significar a própria divindade de Cristo, que foi para a solidão, no sofrimento da sua humanidade, não, certamente, por mutação de lugar, mas por coibição da virtude. Ou significava a má concupiscência, que devemos expulsar de nós, e os movimentos virtuosos, que devemos imolar ao Senhor. — A imundície dos que queimavam essas vítimas no sacrifício tinha a mesma razão já assinalada no sacrifício da vaca vermelha (ad 5).

RESPOSTA À SÉTIMA. — Pelo rito da lei, o leproso não era limpo da mácula da lepra, mas, era encontrado já limpo. Isso significa o lugar da Escritura, que diz (Lv 14, 3 ss): mandará ao que se purifica, vendo que a lepra está curada. Logo, já estava purificado da lepra; mas era considerado como se purificando ao ser restituído, pela decisão do sacerdote, ao convívio social e ao culto divino. Acontecia porém às vezes que, por milagre divino, fosse purificado da lepra, segundo o rito da lei material, quando o sacerdote se enganava no julgar. — Essa purificação do leproso fazia-se de dois modos. Pois, primeiro, era julgado como estando limpo; depois, como tal, era restituído ao convívio social e ao culto divino, i. é, depois de sete dias. — Na primeira purificação o leproso, que devia purificar-se, oferecia por si duas avezinhas vivas, pau de cedro, escarlata e hissopo, de modo que com um fio escarlate fosse ligada a avezinha junto com o hissopo e o pau de cedro. E de maneira que este servisse de cabo ao aspersório; ao passo que o hissopo e a avezinha eram as partes do aspersório que eram molhadas no sangue da outra avezinha imolada em águas vivas. E essas quatro coisas eram oferecidas contra os quatro defeitos da lepra. Pois, contra a putrefacção era oferecido o cedro, árvore incorruptível; contra a fetidez, o hissopo, que é uma erva odorífera; contra a insensibilidade, a avezinha viva; contra a fealdade da cor, a escarlata, que tem cor viva. Deixava-se a ave­zinha viva voar para o campo, porque o leproso era restituído à liberdade antiga. — No oitavo dia, era o purificado admitido ao culto divino e restituído ao convívio social. Porém, depois de ter rapado todo os pelos do corpo, lavado os vestidos, porque a lepra corrói aqueles e contamina estes e os torna fétidos. Depois oferecia um sacrifício pelo seu pecado, porque a lepra era, quase sempre, apanhada, por causa dele. Com o sangue do sacrifício o sacerdote molhava a extremidade da orelha do que devia purificar-se, e os polegares da mão e pé direitos; pois é nesses lugares que primeiro se distingue e sente a lepra. Acrescentavam ainda a esse rito três líquidos: o sangue contra a corrupção do mesmo; o azeite, para designar a cura da doença; a água viva, para limpar a espurcícia. A razão figurada é, que as duas avezinhas significam a divindade e a humanidade de Cristo. Uma delas, símbolo da humanidade, era imolada num vaso de barro sobre águas vivas, porque a paixão de Cristo consagrou as águas do baptismo, a outra, símbolo da impassibilidade divina, ficava viva, porque a divindade não pode morrer. Por isso voava, por a divindade não poder ser atingida pelo sofrimento, A avezinha viva era posta na água, para ser aspergida, simultaneamente com o pau de cedro, a escarlata, o carmesim e o hissopo, i. é, com a fé, a esperança e a caridade, como dissemos, porque somos bapti­zados na fé em Deus e no homem. O homem lava, na água do baptismo e das lágrimas, as suas vestes, i. é, as suas obras, e todos os pelos, i. é, os pensamentos. A extremidade da orelha direita daquele que se purificava era molhada no sangue e no azeite, para precaver o ouvido contra as palavras corruptoras. Os polegares da mão direita e do pé eram molhados, para as suas acções serem santas. O mais, que diz respeito a esta purificação, ou a das outras imundícies, nada tem de especial que não esteja compreendido nos outros sacrifícios pelos pecados ou pelos delitos.

RESPOSTA À OITAVA E À NONA. — Assim como o povo judeu foi instituído para o culto de Deus, pela circuncisão, assim o ministro, por alguma especial purificação ou consagração. Por isso foi-lhe ordenado que se separasse dos outros povos, como destinado especialmente ao ministério do culto divino, o que com esses se não dava. E tudo o que era feito com respeito à consagração ou instituição deles, visava mostrar que tinham uma prerrogativa de pureza, virtude e dignidade. Por isso, na instituição dos ministros faziam-se três coisas. Primeiro, eram purificados; segundo, ordenados e consagrados; terceiro, aplicados ao uso do ministério.

Comummente todos se purificavam pela ablução com água e por certos sacrifícios; em especial, porém, os levitas raspavam todos os pelos do corpo, como se lê na Escritura (Lv 8).

A consagração dos pontífices e dos sacerdotes fazia-se na ordem seguinte. Primeiro, depois de terem feito a ablução, revestiam-se de certas vestes especiais próprias a designar-lhes a dignidade. Especialmente porém o pontífice era ungido na cabeça com o óleo da unção, para significar que dele promanava para outrem o poder de consagrar, assim como o óleo, da cabeça, escorre para os membros inferiores, conforme se lê na Escritura (Sl 132, 2): Como o perfume derramado na cabeça, que desceu sobre toda a barba de Aarão. Os levitas não tinham outra consagração senão o serem oferecidos ao Senhor pelos filhos de Israel, por meio das mãos do pontífice, que orava por eles. Os sacerdotes menores eram consagrados só nas mãos, que deviam aplicar-se aos sacrifícios; e com o sangue do animal imolado era molhada a extremidade da orelha direita deles, e os polegares do pé e da mão direita. Isso para que fossem obedientes a Deus, no oferecer os sacrifícios, o que era significado pelo umedecimento da orelha direita; e para que fossem solícitos e prontos na execução deles, o que era significado pelo umedecimento do pé e da mão direita. Aspergiam-lhes também as vestes com o sangue do animal imolado, em memória do sangue do cordeiro por quem foram libertos do Egipto. Ofereciam-se também na consagração deles os seguintes sacrifícios. Um bezerro, pelo pecado, em memória da remissão do pecado de Aarão, quando fundiu o bezerro de bronze. Um carneiro em holocausto, em memória da oblação de Abraão, cuja obediência o pontífice devia imitar. O carneiro da consagração, que era uma como hóstia pacífica, em memória da libertação do Egipto pelo sangue do cordeiro. E um canistrel de pães, em memória do maná dado ao povo.

Também concernia à aplicação do ministério o impor-se-lhes sobre as mãos a gordura do carneiro, a torta de um pão, e a espádua direita, para mostrar que recebiam o poder de fazer tais oferendas ao Senhor. Os levitas enfim se aplicavam ao ministério por serem introduzidos no tabernáculo da aliança, como que para ministrarem nos vasos do santuário.

A razão figurada disso tudo é a seguinte. Os que vão ser consagrados ao ministério espiritual de Cristo devem, primeiro, purificar-se pela água do baptismo e das lágrimas, em fé da paixão de Cristo; é um sacrifício expiatório e purgativo. E devem raspar todos os pelos do corpo, i. é. todos os pensamentos maus. Também devem ornar-se de virtudes e se consagrar com o óleo do Espírito Santo e com a aspersão do sangue de Cristo. E assim, devem estar preparados para desempenhar os ministérios espirituais.

RESPOSTA À DÉCIMA. — Como já dissemos, a intenção da lei era despertar a reverência do culto divino. Isto de dois modos: excluindo do culto o que podia ser desprezível; e aplicando-lhe tudo o que fosse considerado como honorificente. E se isto se observava em relação ao tabernáculo, aos seus vasos e aos animais que iam ser imolados, com maioria de razão devia ser observado em relação aos ministros. — Donde, para remover deles o que quer que fosse de desprezível, foi ordenado que não tivessem deformidade ou defeito corpóreo, porque homens que o têm costumam ser tomados pelos outros em má conta. Pelo que também foi instituído que não fossem escolhidos para o ministério de Deus, a esmo e de qualquer família; mas os de uma certa prosápia, e conforme à sucessão da família, para assim se conseguirem ministros mais ilustres e nobres.

E para que fossem tidos em reverência, acrescentavam-lhes vestes de ornato especial, e uma especial consagração. E esta é em geral a causa desses ornatos. — Em especial porém importa saber-se que o pontífice tinha oito ornamentos. — Primeiro, vestes de linho. Segundo, uma túnica de jacinto, em cujas extremidades, aos pés e ao redor, se punham umas campainhas e umas como que romãs de jacinto, de púrpura e de escarlata tinta duas vezes. — Terceiro, o efod, que cobria os ombros e a parte anterior até a cintura, e que era de ouro, de jacinto, de púrpura, de escarlata tinta duas vezes, e de linho fino retorcido. E nos ombros tinha duas pedras cornalinas, onde estavam gravados os nomes dos filhos de Israel. — Quarto, o racional, feito da mesma matéria; que era quadrado, colocado no peito e ligado ao efod. E nesse racional havia doze pedras preciosas separadas em quatro fileiras, nas quais também estavam escritos os nomes dos filhos de Israel. Isso como para significar que o pontífice carregava com o peso de todo o povo, por lhe ter os nomes nos ombros; e que, por trazê-las no peito, i. é, guardando-os quase no coração, devia perenemente pensar na salvação dele. No racional também o Senhor mandou escrever: Doutrina e Verdade, porque nele estavam escritas certas determinações relativas à verdade da justiça e da doutrina. Os judeus porém fabulavam, que no racional havia uma pedra capaz de revestir-se de cores diversas conforme aos diversos sucessos por que deviam passar os filhos de Israel, e chamavam-lhe — Doutrina e Verdade. — Quinto, o cíngulo, i. é, uma cinta feita das quatro cores já referidas — Sexto, a tiara, i. é, uma mitra de bispo — Sétimo, a lâmina de ouro, pendente da cabeça, na qual estava escrito o nome do Senhor. — Oitavo, calções de linho, para lhes cobrirem as partes, quando subissem ao santuário ou ao altar. Destes oito ornatos menores os sacerdotes tinham quatro, a saber, a túnica, os calções, o cíngulo e a tiara.

Desses ornamentos a razão literal era, segundo alguns, significar a disposição do orbe terrestre, como se o pontífice se considerasse ministro do Criador do mundo. Donde o dizer a Escritura (Sb 18, 24): Na vestidura de Aarão estava descrito o orbe da terra. Assim, os calções de linho figuravam a terra, donde ele nasce. A circunvolução do cíngulo, o oceano, que circunda a terra. A túnica de jacinto, com a sua cor, significava o ar; as suas campainhas, o trovão; as romãs, os relâmpagos. O efod significava, na sua variedade, o céu sidéreo; as duas cornalinas, os dois hemisférios, ou o sol e a lua. As doze pedras preciosas no peito, os doze signos do Zodíaco; estavam postas no racional, porque, nos fenómenos celestes estão as razões essenciais dos terrestres, conforme a Escritura (Jó 18, 33): Acaso entendes a ordem do céu e darás disso a razão estando na terra? A mitra ou tiara significava o céu empíreo. A lâmina de ouro, Deus, que tudo governa.

A razão figurada é manifesta. Pois, as deformidades ou defeitos corpóreos, de que os sacerdotes deviam estar imunes, significam os diversos vícios e pecados que não deviam ter. Não deviam ser cegos, i. é, ignorantes. Nem coxos, i. é, instáveis e sujeitos a inclinações diversas. Nem de nariz pequeno, grande ou torcido; i. é, não deviam por falta de discrição, cair em exageros por excesso ou defeito; ou ainda, não praticar actos maus; pois, o nariz designa o discernimento, capaz de distinguir os odores. Não deviam ter quebrado o pé ou a mão, i. é, perder a virtude de agir ou proceder virtuosamente. Seria também rejeitado o corcovado, anterior ou posteriormente; o que significa o amor supérfluo das coisas terrenas. O remeloso, i. é, entenebrecido de engenho pelo afecto carnal, pois a remelosidade provém do fluxo dos humores. O de belide no olho, i. é, o que no pensamento nutrisse a presunção de ser puro na justificação. Também quem tivesse sarna pertinaz, i. é, a petulância da carne. Quem tivesse impigem, pois esta sem dor se dissemina pelo corpo e ofende a beleza dos membros; e isso designa a avareza, E também quem tivesse quebradura ou fosse obeso; i. é, trouxesse a carga da torpeza no coração, embora não a realizasse por obras.

Os ornamentos designam as virtudes dos ministros de Deus. Pois, as quatro seguintes são necessárias a todos. A castidade, significada pelos calções; a pureza da vida, pela túnica de linho; o moderado discernimento, pelo cíngulo; a rectitude de intenção, pela tiara protectora da cabeça. — Mas, além destas, os pontífices devem ter quatro outras. Primeiro, lembrarem-se de Deus, pela contemplação, isto simbolizado na lâmina de ouro com o nome de Deus na fronte. Segundo, deviam suportar as fraquezas do povo, o que era simbolizado pelo efod. Terceiro, trazer o povo no coração e no íntimo, pela solicitude da caridade; e isso significa o racional. Quarto, viver um género de vida celeste, pelas obras de perfeição, o que é significado pela túnica de jacinto. Essa túnica tinha, na extremidade, campainhas de ouro, símbolo da doutrina das coisas divinas que deve ir de par com o género de vida celeste do pontífice. Acrescentavam-se ainda umas romãs, símbolo da unidade da fé e da concórdia nos bons costumes, porque a sua doutrina deve ser conexa, de modo a não romper a unidade da fé e da paz.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.



Evangelho e comentário, Leit. Espiritual (Cong para a Doutrina da Fé - Igreja entendida como comunhão,)

Tempo comum XVI Semana

São Joaquim e Santa Ana – Pais de Nossa Senhora

Evangelho: Mt 13, 16-17

Ditosos, porém, os vossos olhos, porque vêem e os vossos ouvidos, porque ouvem. 17 Em verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não o viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram.

Comentário:


Hoje percebemos perfeitamente que Jesus Cristo se referia a nós.
Lemos as Suas palavras mas não as escutamos directamente vindas da Sua boca.
Contudo tal não nos impede de acreditar nele e, pelo menos, tentar pôr em prática pois seus ensinamentos.

Arrisco afirmar que somos mais afortunados que aqueles a quem foram dirigidas porque o exemplo de multidões de crentes que ao longo de dois mil anos nos foi deixado, constitui prova suficiente e bastante para acreditarmos.

Que poderia interessar-nos ouvir se, mesmo ouvindo, não acreditássemos?

(ama, comentário, Mt 13, 16-17, 2013.07.26)

Leitura espiritual


Documentos do Magistério

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

CARTA AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA
SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA IGREJA ENTENDIDA COMO COMUNHÃO

INTRODUCÃO

1. O conceito de comunhão (koinonía), já posto de manifesto nos textos do Concílio Vaticano II 1, é muito adequado para exprimir o núcleo profundo do Mistério da Igreja e pode ser, certamente, a chave de leitura para uma renovada eclesiologia católica 2. O aprofundamento da realidade da Igreja como Comunhão é, na verdade, uma tarefa particularmente importante, que oferece amplo espaço para a reflexão teológica sobre o mistério da Igreja, "cuja natureza admite sempre novas e mais profundas pesquisas" 3. Algumas visões eclesiológicas, porém, apresentam uma insuficiente compreensão da Igreja enquanto mistério de comunhão, especialmente pela falta de uma adequada integração do conceito de comunhão com os de Povo de Deus e de Corpo de Cristo, e também por um insuficiente relevo dado à relação entre a Igreja como comunhão e a Igreja como sacramento.

2. Tendo em conta a importância doutrinal, pastoral e ecuménica dos diversos aspectos que dizem respeito à Igreja entendida como Comunhão, com a presente Carta, a Congregação para a Doutrina da Fé considerou oportuno recordar brevemente e esclarecer, sempre que necessário, alguns dos elementos fundamentais que devem ser considerados pontos firmes, inclusivamente no desejado trabalho de aprofundamento teológico.

I A IGREJA, MISTÉRIO DE COMUNHÃO

3. O conceito de comunhão está "no coração da autoconsciência da Igreja" 4, enquanto Mistério da união pessoal de cada homem com a Trindade divina e com os outros homens, iniciada na fé 5, e orientada para a plenitude escatológica na Igreja celeste, embora sendo já desde o início uma realidade na Igreja sobre a terra 6.

Para que o conceito de comunhão, que não é unívoco, possa servir como chave interpretativa da eclesiologia, deve ser entendido no contexto dos ensinamentos bíblicos e da tradição patrística, nos quais a comunhão implica sempre uma dupla dimensão: vertical (comunhão com Deus) e horizontal (comunhão entre os homens). É essencial à visao crista da comunhão reconhecê-la, antes do mais, como dom de Deus, como fruto da iniciativa divina cumprida no mistério pascal. A nova relação entre o homem e Deus, estabelecida em Cristo e comunicada nos sacramentos, expande-se ainda a uma nova relação dos homens entre si. Consequentemente, o conceito de comunhão deve ser também capaz de exprimir a natureza sacramental da Igreja enquanto estamos "longe do Senhor" 7, assim como a peculiar unidade que faz dos fiéis os membros de um mesmo Corpo, o Corpo místico de Cristo 8, uma comunidade organicamente estruturada 9, "um povo congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo" 10, e dotado ainda com os meios adequados à uniao visível e social 11.

4. A comunhão eclesial é ao mesmo tempo invisível e visível. Na sua realidade invisível, é a comunhão de cada homem com o Pai por Cristo no Espírito Santo, e com os outros homens que comparticipam na natureza divina 12, na paixão de Cristo 13, na mesma fé 14, no mesmo espírito 15. Na Igreja sobre a terra, entre esta comunhão invisível e a comunhão visível na doutrina dos Apóstolos, nos sacramentos e na ordem hierárquica, existe uma íntima relação. Mediante estes dons divinos, realidades bem visíveis, Cristo exercita de vários modos na história a Sua função profética, sacerdotal e real pela salvação dos homens 16. Esta relação entre os elementos visíveis e os elementos invisíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja como Sacramento de salvação.

Desta sacramentalidade deriva o facto de a Igreja nao ser uma realidade voltada sobre si mesma, mas permanentemente aberta à dinâmica missionária e ecuménica, porque enviada ao mundo para anunciar e testemunhar, actualizar e expandir o mistério de comunhão que a constitui: a fim de reunir todos e tudo em Cristo 17; de ser para todos "sacramento inseparável de unidade" 18.

5. A comunhão eclesial, na qual cada um se insere pela fé e pelo Baptismo 19, tem a sua raiz e o seu centro na Sagrada Eucaristia. Na realidade, o Baptismo é incorporação num corpo edificado e vivificado pelo Senhor ressuscitado mediante a Eucaristia, de tal maneira que este corpo pode ser verdadeiramente chamado Corpo de Cristo. A Eucaristia é fonte e força criadora de comunhão entre os membros da Igreja precisamente porque une cada um deles com o próprio Cristo: "na fracção do pão eucarístico, participando nós realmente no Corpo do Senhor, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós: 'Visto que há um só pão, nós, embora muitos, formamos um só corpo, nós todos que participamos dum mesmo pão' (1 Cor. 10, 17)" 20.

Por isso, a expressão paulina a Igreja é o Corpo de Cristo significa que a Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o seu Corpo e nos transforma num só Corpo 21, é o lugar onde permanentemente a Igreja se exprime na sua forma mais essencial: presente em toda a parte e, no entanto, sendo só uma, como um é Cristo.

6. A Igreja é Comunhão dos santos, segundo a expressao tradicional que encontramos nas versões latinas do Símbolo apostólico a partir do final do século IV 22. A comum participação visível nos bens da salvação (as coisas santas), especialmente na Eucaristia, é raiz da comunhão invisível entre os participantes (os santos). Esta comunhão comporta uma solidariedade espiritual entre os membros da Igreja, enquanto membros de um mesmo Corpo 23, e tende à sua efectiva união na caridade, constituindo "um só coração e uma só alma" 24. A comunhão conduz, de igual modo, à união na oração 25, inspirada em todos por um mesmo Espírito 26, o Espírito Santo "que penetra e une toda a Igreja" 27.

Esta comunhão, nos seus elementos invisíveis, existe nao apenas entre os membros da Igreja peregrinante na terra, mas também entre estes e todos aqueles que, tendo deixado este mundo na graça do Senhor, fazem parte da Igreja celeste ou serao nela incorporados depois de uma plena purificação 28. Isto significa, aliás, que existe uma mútua relação entre a Igreja peregrina sobre a terra e a Igreja celeste na missão histórico-salvífica. Dela resulta a importância eclesiológica não só da intercessão de Cristo a favor dos seus membros 29, mas também da dos santos e, num modo eminente, da Santíssima Virgem Maria 30. A essência da devoção aos santos, tao presente na piedade do povo cristão, corresponde assim à profunda realidade da Igreja como mistério de comunhão.

II IGREJA UNIVERSAL E IGREJAS PARTICULARES

7. A Igreja de Cristo, que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica, é a Igreja universal, ou seja, a universal comunidade dos discípulos do Senhor 31, que se torna presente e operante na particularidade e diversidade das pessoas, grupos, tempos e lugares. Entre estas múltiplas expressões particulares da presença salvífica da única Igreja de Cristo, encontram-se desde a época apostólica as que em si mesmas são Igrejas 32, porque, embora particulares, nelas se torna presente a Igreja universal com todos os seus elementos essenciais 33. São por isso constituídas "à imagem da Igreja universal" 34, e cada uma delas é "uma porção do Povo de Deus confiada à cura pastoral do Bispo coadjuvado pelo seu presbitério" 35.

8. A Igreja universal é assim o Corpo das Igrejas 36, pelo que é possível aplicar de modo analógico o conceito de comunhão também à uniao entre as Igrejas particulares e entender a Igreja universal como uma Comunhão de Igrejas. As vezes, porém, a ideia de "comunhão de Igrejas particulares" é apresentada de tal modo que enfraquece a concepção da unidade da Igreja, sob o plano visível e institucional. Chega a afirmar-se que cada Igreja particular é um sujeito em si mesmo completo, e que a Igreja universal é o resultado do reconhecimento recíproco das Igrejas particulares. Esta unilateralidade eclesiológica, redutiva tanto do conceito de Igreja universal como do de Igreja particular, manifesta uma insuficiente compreensão do conceito de comunhão. Como a história aliás o demonstra, quando uma Igreja particular procurou alcançar a sua própria autossuficiência, debilitando a sua real comunhão com a Igreja universal e com o seu centro vital e visível, enfraqueceu também a sua unidade interna e, além disso, viu-se em perigo de perder a própria liberdade perante as mais diversas forças de sujeiçao e de exploração 37.

9. Para compreender o verdadeiro sentido da aplicação analógica do termo comunhão no conjunto das Igrejas particulares, é necessário, em primeiro lugar, ter em conta que estas, porque são partes da única Igreja de Cristo 38, têm com o todo, isto é, com a Igreja universal, uma peculiar relação de "mútua interioridade" 39, porque em cada Igreja particular "está verdadeiramente presente e actua a Igreja de Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica" 40. Por isso, a Igreja universal nao pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federação de Igrejas particulares" 41. Ela nao é o resultado da sua comunhão, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular.

Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criação 42 e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mãe e não produto das Igrejas particulares. Além disso, temporalmente, a Igreja manifesta-se no dia de Pentecostes na comunidade dos cento e vinte que estavam reunidos à volta de Maria e dos doze Apóstolos, representantes da única Igreja e futuros fundadores das Igrejas locais, que têm uma missão orientada para o mundo: já então a Igreja fala todas as línguas 43.

Dela, manifestada universal na origem, têm início as diversas Igrejas locais, como realizações particulares de uma e única Igreja de Jesus Cristo. Nascendo na e da Igreja universal, nela e dela têm a sua eclesialidade. Por isso, a fórmula do Concílio Vaticano II: A Igreja na e a partir das Igrejas (Ecclesia in et ex Ecclesiis) 44, é inseparável destoutra: As Igrejas na e a partir da Igreja (Ecclesiae in et ex Ecclesia) 45. É evidente a natureza mistérica desta relação entre a Igreja universal e as Igrejas particulares, que nao pode comparar-se com a que existe entre o todo e as partes de qualquer grupo ou sociedade puramente humana.

10. Cada fiel, mediante a fé e o Baptismo, é inserido na Igreja una, santa, católica e apostólica. Não se pertence à Igreja universal de modo mediato, através da pertença a uma Igreja particular, mas de modo imediato, ainda que o ingresso e a vida na Igreja universal se realizem necessariamente em uma Igreja particular. Na perspectiva da Igreja entendida como comunhão, a universal comunhão dos fiéis e a comunhão das Igrejas não são, pois, consequência uma da outra, mas constituem a mesma realidade encarada de perspectivas diversas.

Além disso, a pertença a uma Igreja particular nunca está em contradição com a realidade de que na Igreja ninguém é estrangeiro 46: especialmente na celebração da Eucaristia, cada um dos fiéis se encontra na sua Igreja, na Igreja de Cristo, prescindindo da sua pertença, sob o ponto de vista canónico, à diocese, paróquia ou outra comunidade particular onde tem lugar essa celebração. Neste sentido, permanecendo firmes as necessárias determinações de dependência jurídica 47, quem pertence a uma Igreja particular, pertence a todas as Igrejas; já que a pertença à Comunhão, como pertença à Igreja, nunca é somente particular, mas, pela sua própria natureza, é sempre universal 48.

(Cont.)
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Notas:
1 Cfr. Const.Lumen gentium, nn. 4, 8, 13-15, 18, 21, 24-25; Const. Dei Verbum, n. 10; Const. Gaudium et Spes, n. 32; Decr. Unitatis redintegratio, nn. 2-4, 14-15, 17-19, 22.
2 Cfr. SINODO DOS BISPOS, II Assembleia extraordinária (1985), Relatio finalis, II, C), 1.
3 PAULO VI, Discurso de abertura do segundo período do Conc. Vaticano II, 29-IX-1963: AAS 55 (1963) p. 848. Cfr., por exemplo, as perspectivas de aprofundamento indicadas pela COMISSÃO TEOLOGICA INTERNACIONAL, in Themata selecta de ecclesiologia, "Documenta (1969-1985)", Lib. Ed. Vaticana 1988, pp. 462-559.
4 JOÃO PAULO II, Discurso aos Bispos dos Estados Unidos da América, 16-IX-1987, n. 1: "Insegnamenti di Giovanni Paolo II" X, 3 (1987) p. 553.
5 1 Jo 1, 3: "o que vimos e ouvimos, vo-lo anunciamos, para que vós também tenhais comunhão connosco, e para que a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo". Cfr. ainda 1 Cor 1, 9; JOÃO PAULO II, Ex. Ap. Christifideles laici, 30-XII-1988, n. 19; SINODO DOS BISPOS (1985), Relatio Finalis, II, C), 1.
6 Cfr. Fil 3, 20-21; Col 3, 1-4; Const. Lumen Gentium, n. 48.
7 2 Cor 5, 6; Cfr. Const. Lumen gentium, n. 1.
8 Cfr. ibidem, n. 7; Pio XII, Enc. Mystici Corporis, 29-VI-1943: AAS 35 (1943) pp. 200ss.
9 Cfr. Lumen gentium, n. 11/a.
10 S. CIPRIANO, De Oratione Dominica, 23: PL 4, 553; cfr. Const. Lumen gentium, n. 4/b.
11 Cfr. Const. Lumen gentium, n. 9/c.
12 Cfr. 2 Pd 1, 4.
13 Cfr. 2 Cor 1, 7.
14 Cfr. Ef 4, 13; Filem 6.
15 Cfr. Fil 2, 1.
16 Cfr. Const. Lumen Gentium, nn. 25-27.
17 Cfr. Mt 28, 19-20; Jo 17, 21-23; Ef 1, 10; Const. Lumen gentium, nn. 9/b, 13 e 17; Decr. Ad gentes, nn. 1 e 5; ST. IRINEU, Adversus haereses, III, 16, 6 e 22, 1-3: PG 7, 925-926 e 955-958.
18 S. CIPRIANO, Epist. ad Magnum, 6: PL 3, 1142.
119 Ef 4, 4-5: "Há um só corpo e um só Espírito, como também vós fostes chamados a uma só esperança pela vossa vocação. Há um só Senhor, uma só fé, um só baptismo". Cfr. também Mc 16, 16.
20 Const. Lumen gentium, n. 7/b. A Eucaristia é o sacramento "mediante o qual a Igreja se consocia no tempo presente" (STO. AGOSTINHO, Contra Faustum, 12, 20: PL 42, 265). "A nossa participaçao no corpo e sangue de Cristo não tende senão a transformar-nos naquilo que recebemos" (S. LEÃO MAGNO, Sermo 63, 7: PL 54, 357).
21 Cfr. Const. Lumen gentium, nn. 3 e 11/a; S. JOÃO CRISOSTOMO, In 1 Cor. hom., 24, 2: PG 61, 200.
22 Cfr. Denz.-Schön. 19, 26-30.
23 Cfr. 1 Cor 12, 25-27; Ef 1, 22-23; 3, 3-6.
24 At 4, 32.
25 Cfr. At 2, 42.
26 Cfr. Rom 8, 15-16.26; Gal 4, 6; Const. Lumen gentium, n. 4.
27 S.TOMÃS DE AQUINO, De Veritate, q. 29, a. 4 c. De facto, "elevado na cruz e glorificado, o Senhor Jesus comunicou o Espírito prometido, por meio do qual chamou e reuniu na unidade da fé, da esperança e da caridade o povo da Nova Aliança, que é a Igreja" Decr. Unitatis redintegratio, n. 2/b).
28 Cfr. Const. Lumen gentium, n. 49.
29 Cfr. Hebr 7, 25.
30 Cfr. Const. Lumen gentium, nn. 50 e 66.
31 Cfr. Mt 16, 18; 1 Cor 12, 28; etc.
32 Cfr. At 8, 1; 11, 22; 1 Cor 1, 2; 16, 19; Gal 1, 22; Apoc 2, 1.8; etc.
33 Cfr. PONTIFICIA COMISSÃO BIBLICA, Unité et diversité dans l'Église, Lib. Ed. Vaticana, 1989, especialmente, pp. 14-28.
34 Const. Lumen gentium, n. 23/a; cfr. Decr. Ad Gentes, n. 20/a.
35 Decr. Christus Dominus, n. 11/a.
36 Const. Lumen gentium, n. 23/b. Cfr. STO. HILÃRIO DE POITIERS, In Psalm., 14, 3: PL 9, 301; S. GREGORIO MAGNO, Moralia, IV, 7, 12: PL 75, 643.
37 Cfr. PAULO VI, Ex. Ap. Evangelii nuntiandi, 8-XII-1975, n. 64/b.
38 Decr. Christus Dominus, n. 6/c.
39 JOÃO PAULO II, Discurso à Cúria Romana, 20-XII-1990, n. 9: "L'Osservatore Romano", 21- XII-1990, p. 5.
40 Decr. Christus Dominus, n. 11/a.
41 JOÃO PAULO II, Discurso aos Bispos dos Estados Unidos da América, 16-IX-1987, n. 3: cit., p. 555.
42 Cfr. PASTOR DE HERMAS, Vis. 2, 4: PG 2, 897-900; S. CLEMENTE ROMANO, Epist. II ad Cor., 14, 2: Funck, 1, 200.
43 Cfr. At 2, 1 e ss.. STO. IRINEU, Adversus haereses, III, 17, 2 (PG 7, 929-930): "no Pentecostes (...) todas as nações (...) eram conscientes de que se haviam transformado num coro admirável para entoar o hino de louvor a Deus em perfeito acordo, porque o Espírito tinha anulado as distâncias, eliminado as dissonâncias e transformado o consenso dos povos em primícias para oferecer ao Pai". Cfr. também S. FULGENCIO DE RUSPE, Sermo 8 in Pentecoste, 2-3: PL 65, 743-744.
44 Const. Lumen gentium, n. 23/a: "(as Igrejas particulares)... nas quais e a partir das quais existe só uma e única Igreja Católica". Esta doutrina desenvolve na continuidade o que já havia afirmado antes, por exemplo, Pio XII, Enc. Mystici Corporis, cit., p. 211: "... a partir das quais existe e é composta a Igreja Católica".
45 Cfr. JOÃO PAULO II, Discurso à Cúria Romana, 20-XII-1990, n. 9: cit., p. 5.
46 Cfr. Gal 3, 28.
47 Cfr., por exemplo, C.I.C., can. 107.
48 S. JOÃO CRISOSTOMO, In Ioann. hom., 65, 1 (PG 59, 361): "quem está em Roma sabe que os da India sao seus membros". Cfr. Const. Lumen gentium, n. 13/b.