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Nada vale a pena se não estamos junto do Senhor

Maria, tua Mãe, levar-te-á ao Amor de Jesus. E aí estarás "cum gaudio et pace", com alegria e paz, sempre "levado" – porque sozinho cairias e encher-te-ias de lodo – pelo caminho fora, para crer, para amar e para sofrer. (Forja, 677)

Maria e José perguntaram por ele a parentes e conhecidos. E, como não o encontrassem, voltaram a Jerusalém à sua procura. A Mãe de Deus, que procurou com afã o seu Filho, perdido sem sua culpa e que sentiu a maior alegria ao encontrá-lo, ajudar-nos-á a voltar atrás, a rectificar o que for preciso, quando, pelas nossas leviandades ou pecados, não consigamos descobrir Cristo. Teremos assim a alegria de o abraçar de novo, para lhe dizer que nunca mais o perderemos.


Maria é Mãe da ciência, porque com Ela se aprende a lição que mais importa: que nada vale a pena se não estamos junto do Senhor, que de nada servem todas as maravilhas da terra, todas as ambições satisfeitas, se no nosso peito não arde a chama de amor vivo, a luz da santa esperança, que é uma antecipação do amor interminável, na nossa Pátria definitiva. (Amigos de Deus, 278)

Pequena agenda do cristão

Quarta-Feira


(Coisas muito simples, curtas, objectivas)





Propósito:

Simplicidade e modéstia.


Senhor, ajuda-me a ser simples, a despir-me da minha “importância”, a ser contido no meu comportamento e nos meus desejos, deixando-me de quimeras e sonhos de grandeza e proeminência.


Lembrar-me:
Do meu Anjo da Guarda.


Senhor, ajuda-me a lembrar-me do meu Anjo da Guarda, que eu não despreze companhia tão excelente. Ele está sempre a meu lado, vela por mim, alegra-se com as minhas alegrias e entristece-se com as minhas faltas.

Anjo da minha Guarda, perdoa-me a falta de correspondência ao teu interesse e protecção, a tua disponibilidade permanente. Perdoa-me ser tão mesquinho na retribuição de tantos favores recebidos.

Pequeno exame:
Cumpri o propósito que me propus ontem?



Temas para meditar - 163

Amor de Deus

Pode dizer-se, de certo modo, que Deus quer sofrer, por amor. Ele podia eliminar o ser humano, e acabar com esse sofrimento. Mas ama-o demais para isso. Ele podia obrigar-nos a sermos santos, acabando com a nossa liberdade. Também assim acabaria com o sofrimento. Mas também acabaria connosco. Por isso, em resultado do amor, Deus encontra-se na situação paradoxal de depender de nós. Como uma mãe, cuja felicidade depende vitalmente daquele filho que ela gerou.


(joão césar das nevesO Século de Fátima, Principia, 2ª Ed. nr. 125)

Tratado da lei 41

Questão 99: Dos preceitos da lei antiga.

Art. 3 — Se a lei antiga continha preceitos cerimoniais, além dos morais.

(Infra, a. 4, 5; q. 101, a. 1; q. 103, a. 3. q. 104, a. 1; IIª-IIae, q. 122, a. 1, ad 2; IV Sent., dist. I, q. 1, exposit. Litt.; Quodl. II, q. 4, a. 3; In Matth., cap. XXIII).

Parece que a lei antiga não continha preceitos cerimoniais, além dos morais.

1. — Pois, toda lei é-nos imposta para ser a regra directiva dos nossos actos humanos. Ora, os actos humanos chamam-se morais, como já se disse (q. 1, a. 3). Logo, parece que a lei antiga dada aos homens não devia conter senão preceitos morais.

2. Demais. — Os preceitos chamados cerimoniais pertencem ao culto divino. Ora, o culto divino é um acto de virtude, i. é, de religião que, como Túlio diz, à divina natureza rende um culto e cerimónia. Ora, visando os preceitos morais aos actos das virtudes, como já se disse (a. 2), parece que os preceitos cerimoniais não se devem distinguir dos morais.

3. Demais. — Preceitos cerimoniais são os de significação figurativa. Ora, como diz Agostinho, entre os homens as palavras são principalmente significativas. Logo, não havia nenhuma necessidade de a lei conter preceitos cerimoniais sobre alguns actos figurativos.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 4, 13-14): As dez palavras que escreveu em duas tábuas de pedra, mandou-me naquele tempo que vos ensinasse as cerimónias e as ordenações que vós devíeis guardar. Ora, os dez preceitos da lei são morais. Logo, além dos preceitos morais, há outros que são cerimoniais.

Como já se disse (a. 2), a lei divina foi principalmente instituída a fim de ordenar os homens para Deus; ao passo que a lei humana, a fim de ordená-los principalmente uns para os outros. Por isso, as leis humanas não cuidaram em instituir nada sobre o culto divino, senão em ordem ao bem comum humano. E também por isso instituíram muitas disposições, relativas às coisas divinas, por lhes parecerem convenientes a informar os costumes humanos, como o demonstra o rito dos gentios. A lei divina, inversamente, ordenou os homens uns para os outros, enquanto isso convinha com a ordenação para Deus, que ela principalmente visava. Ora, o homem ordena-se para Deus, não só pelos actos interiores do espírito, — crer, esperar e amar — mas também por algumas obras exteriores, pelas quais confessa a sua dependência, de Deus. E essas obras consideram-se como pertencentes ao culto de Deus. E esse culto se chama cerimónia, quase munia, i. é, dons de Ceres, chamada a deusa dos frutos, como alguns dizem; porque, dos frutos se fizeram as primeiras oblações a Deus. Ou, como refere Valério Máximo, o nome de cerimónia foi introduzido para significar o culto divino, entre os latinos, por causa de um lugar fortificado perto de Roma chamado Caere. Porque, quando Roma foi tomada pelos Gauleses, para ali foram transferidos os sacrifícios dos Romanos, reverentissimamente feitos. Por onde, os preceitos da lei, pertencentes ao culto de Deus, chama-se especialmente cerimoniais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Os actos humanos entendem também com o culto divino. Por isso, a lei antiga, dada aos homens, contém preceitos referentes a eles.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como já se disse (q. 91, a. 3), os preceitos da lei da natureza são comuns e precisam de determinação. Ora, determinam-se pela lei humana e pela divina. E assim como as próprias determinações, feitas pela lei humana, não se consideram como de lei natural, mas de direito positivo; assim também, essas determinações dos preceitos da lei da natureza, feitas pela lei divina, distinguem-se dos preceitos morais, pertencentes à lei da natureza. Ora, cultuar a Deus, sendo acto de virtude, pertence ao preceito moral; mas, a determinação desse preceito, i. é, que deva ser cultuado com tais vítimas e tais dons, pertence aos preceitos cerimoniais. Donde, os preceitos cerimoniais distinguem-se dos preceitos morais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Dionísio, as coisas divinas não podem manifestar-se aos homens senão sob certas semelhanças sensíveis. E estas semelhanças movem mais o ânimo, quando não são expressas só pela palavra, mas também falam aos sentidos. Por isso, a Divina Escritura manifesta as coisas divinas, não só por semelhanças expressas verbalmente, como o mostram as locuções metafóricas; mas também por semelhanças das coisas propostas à vista, o que pertence aos preceitos cerimoniais.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evangelho, comentário e Leitura espiritual (COLAB. DO HOMEM E DA MULHER NA IGREJA E NO MUNDO)

Tempo comum XIII Semana

Evangelho: Mt 8, 28-34

28 Quando Jesus chegou à outra margem do lago, à região dos gadarenos, vieram-Lhe ao encontro dois endemoninhados, que saíam dos sepulcros. Eram tão ferozes que ninguém ousava passar por aquele caminho. 29 E puseram-se a gritar, dizendo: «Que tens Tu connosco, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?». 30 Estava não longe deles uma vara de muitos porcos, que pastavam. 31 Os demónios suplicaram a Jesus: «Se nos expulsas daqui, manda-nos para aquela vara de porcos». 32 Ele disse-lhes: «Ide». Eles, saindo, entraram nos porcos, e imediatamente toda a vara se precipitou, com ímpeto, de um despenhadeiro, no mar e morreram nas águas. 33 Os pastores fugiram, e indo à cidade, contaram tudo o que se tinha passado com os possessos do demónio. 34 Então toda a cidade saiu ao encontro de Jesus e, quando O viram, pediram-Lhe que se retirasse do seu território.

Comentário:

Parece um pouco estranha esta passagem do Evangelho porque alguns –e talvez seja o nosso caso – não compreendemos o que terá levado o Senhor a consentir na perda de tão grande numero de porcos.

Três considerações:

1ª - Se os habitantes da cidade criavam porcos está claro que não seriam judeus. Sendo assim, muito provavelmente ignoravam o que se referia ao Messias esperado por Israel. Logo, a pessoa de Jesus Cristo não lhes “dizia” nada de especial e, talvez por este motivo o Senhor quisesse captar a sua atenção.

2ª – Permitindo ao demónio praticar algo mau - como indiscutivelmente a perda dos animais foi – Jesus, ao mesmo tempo – impede-o de fazer muito pior que era o exercer o seu domínio sobre uma pessoa humana.

3ª – Colocar os gadarenos perante esta realidade: do demónio só se pode esperar o mal e de Deus o bem.

Foi pena que os habitantes da cidade não tivessem aproveitado a “lição” e se ficassem considerando apenas o prejuízo que nem por ser avultado superava o muito que tinha ganho.

(AMA, comentário sobre Mt 8, 28-34, 2014.05.06)

Leitura espiritual


Documentos do Magistério

CARTA AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA
SOBRE A COLABORAÇÃO DO HOMEM E DA MULHER
NA IGREJA E NO MUNDO

INTRODUÇÃO

1. Perita em humanidade, a Igreja está sempre interessada por tudo o que diz respeito ao homem e à mulher. Nestes últimos tempos, tem-se reflectido muito sobre a dignidade da mulher, sobre os seus direitos e deveres nos diversos âmbitos da comunidade civil e eclesial. Havendo contribuído para o aprofundamento desta temática fundamental, sobretudo com o ensinamento de João Paulo II, 1 a Igreja sente-se hoje interpelada por algumas correntes de pensamento, cujas teses muitas vezes não coincidem com as finalidades genuínas da promoção da mulher.

O presente documento, depois de uma breve apresentação e apreciação crítica de certas concepções antropológicas hodiernas, entende propor algumas reflexões inspiradas pelos dados doutrinais da antropologia bíblica — aliás indispensáveis para a salvaguarda da identidade da pessoa humana — sobre alguns pressupostos em ordem a uma recta compreensão da colaboração activa do homem e da mulher na Igreja e no mundo, a partir dessa sua mesma diferença. Pretendem estas reflexões, ao mesmo tempo, propor-se como ponto de partida para um caminho de aprofundamento no seio da Igreja e para instaurar um diálogo com todos os homens e mulheres de boa vontade, na busca sincera da verdade e no esforço comum de promover relações cada vez mais autênticas.

I. O PROBLEMA

2. Nestes últimos anos têm-se delineado novas tendências na abordagem do tema da mulher. Uma primeira tendência sublinha fortemente a condição de subordinação da mulher, procurando criar uma atitude de contestação. A mulher, para ser ela mesma, apresenta-se como antagónica do homem. Aos abusos de poder, responde com uma estratégia de busca do poder. Um tal processo leva a uma rivalidade entre os sexos, onde a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, com a consequência de introduzir na antropologia uma perniciosa confusão, que tem o seu revés mais imediato e nefasto na estrutura da família.

Uma segunda tendência emerge no sulco da primeira. Para evitar qualquer supremacia de um ou de outro sexo, tende-se a eliminar as suas diferenças, considerando-as simples efeitos de um condicionamento histórico-cultural. Neste nivelamento, a diferença corpórea, chamada sexo, é minimizada, ao passo que a dimensão estritamente cultural, chamada género, é sublinhada ao máximo e considerada primária. O obscurecimento da diferença ou dualidade dos sexos é grávido de enormes consequências a diversos níveis. Uma tal antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico, acabou de facto por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento da família, por sua índole natural bi-parental, ou seja, composta de pai e de mãe, a equiparação da homossexualidade à heterossexualidade, um novo modelo de sexualidade polimórfica.

3. A raiz imediata da sobredita tendência coloca-se no contexto da questão da mulher, mas a sua motivação mais profunda deve procurar-se na tentativa da pessoa humana de libertar-se dos próprios condicionamentos biológicos. 2 De acordo com tal perspectiva antropológica, a natureza humana não teria em si mesma características que se imporiam de forma absoluta: cada pessoa poderia e deveria modelar-se a seu gosto, uma vez que estaria livre de toda a predeterminação ligada à sua constituição essencial.

Muitas são as consequências de uma tal perspectiva. Antes de mais, consolida-se a ideia de que a libertação da mulher comporta uma crítica à Sagrada Escritura, que transmitiria uma concepção patriarcal de Deus, alimentada por uma cultura essencialmente machista. Em segundo lugar, semelhante tendência consideraria sem importância e sem influência o facto de o Filho de Deus ter assumido a natureza humana na sua forma masculina.

4. Perante tais correntes de pensamento, a Igreja, iluminada pela fé em Jesus Cristo, fala ao invés de colaboração activa, precisamente no reconhecimento da própria diferença entre homem e mulher.

Para melhor compreender o fundamento, o sentido e as consequências desta resposta, convém voltar, ainda que brevemente, à Sagrada Escritura, que é rica também de sabedoria humana, e onde esta resposta se manifestou progressivamente, graças à intervenção de Deus em favor da humanidade. 3

II. OS DADOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA BÍBLICA

5. Uma primeira série de textos bíblicos a examinar são os primeiros três capítulos do Génesis. Colocam-nos eles «no contexto do “princípio” bíblico, no qual a verdade revelada sobre o homem como “imagem e semelhança de Deus” constitui a base imutável de toda a antropologia cristã». 4

No primeiro texto (Gen 1,1-2,4) descreve-se o poder criador da Palavra de Deus que estabelece distinções no caos primigénio. Aparecem a luz e as trevas, o mar e a terra firme, o dia e a noite, as ervas e as árvores, os peixes e as aves, todos «segundo a própria espécie». Nasce um mundo ordenado a partir de diferenças que, por sua vez, são outras tantas promessas de relações. Eis, assim, esboçado o quadro geral em que se coloca a criação da humanidade. «Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança... Deus criou o ser humano à sua imagem; criou-o à imagem de Deus; criou-o homem e mulher» (Gen 1, 26-27). A humanidade aqui é descrita como articulada, desde a sua primeira origem, na relação do masculino e do feminino. É esta humanidade sexuada que é explicitamente declarada «imagem de Deus».

6. O segundo relato da criação (Gen 2,4-25) confirma inequivocamente a importância da diferença sexual. Uma vez plasmado por Deus e colocado no jardim, de que recebe a gestão, aquele que é designado ainda com o termo genérico de Adam sente uma solidão que a presença dos animais não consegue preencher. Precisa de uma ajuda que lhe seja correspondente. O termo indica, aqui, não um papel subalterno, mas uma ajuda vital. 5 A finalidade é, efectivamente, a de permitir que a vida de Adam não se afunde num confronto estéril, e por fim mortal, apenas consigo mesmo. É necessário que entre em relação com um outro ser que esteja ao seu nível. Só a mulher, criada da mesma «carne» e envolvida no mesmo mistério, dá um futuro à vida do homem. Isso dá-se a nível ontológico, no sentido que a criação da mulher da parte de Deus caracteriza a humanidade como realidade relacional. Neste encontro brota também a palavra que abre, pela primeira vez, a boca do homem numa expressão de maravilha: «Esta é realmente carne da minha carne e osso dos meus ossos» (Gen 2,23).

«A mulher — escreveu o Santo Padre em referência a este texto do Génesis — é um outro “eu” na comum humanidade. Desde o início, [o homem e a mulher] aparecem como “unidade dos dois”, e isto significa a superação da solidão originária, na qual o homem não encontra “um auxiliar que lhe seja semelhante” (Gen 2,20). Tratar-se-á aqui do “auxiliar” só na acção, no “dominar a terra”? (cfr Gen 1,28). Certamente se trata da companheira da vida, com a qual o homem pode unir-se como se une com a esposa, tornando-se com ela “uma só carne” e abandonando, por isso, o “seu pai e a sua mãe” (cfr Gen 2,24)». 6

A diferença vital é orientada à comunhão e é vivida de forma pacífica, expressa no tema da nudez: «Ora ambos andavam nus, o homem e a sua mulher, e não sentiam vergonha» (Gen 2,25). Assim, o corpo humano, marcado pelo selo da masculinidade ou da feminilidade, «comporta “desde o princípio” o atributo “esponsal”, ou seja a capacidade de exprimir o amor: aquele amor precisamente no qual o homem-pessoa se torna dom e — mediante esse dom — realiza o próprio sentido do seu ser e existir». 7 Ainda comentando estes versículos do Génesis, o Santo Padre continua: «Nesta sua particularidade, o corpo é a expressão do espírito, e é chamado, no próprio mistério da criação, a existir na comunhão das pessoas, “à imagem de Deus”». 8

Na mesma perspectiva esponsal, compreende-se em que sentido o antigo relato do Génesis dê a entender como a mulher, no seu ser mais profundo e originário, exista «para o outro» (cfr 1Cor 11,9): é uma afirmação que, bem longe de evocar alienação, exprime um aspecto fundamental da semelhança com a Santíssima Trindade, cujas Pessoas, com a vinda de Cristo, revelam estar em comunhão de amor, umas para as outras. «Na “unidade dos dois”, o homem e a mulher são chamados, desde o início, não só a existir “um ao lado do outro” ou “juntos”, mas também a existir reciprocamente “um para o outro”... O texto de Génesis 2,18-25 indica que o matrimónio é a primeira e, num certo sentido, a fundamental dimensão desta chamada. Não é, porém, a única. Toda a história do homem sobre a terra realiza-se no âmbito desta chamada. Na base do princípio do recíproco ser “para” o outro, na “comunhão” interpessoal, desenvolve-se nesta história a integração na própria humanidade, querida por Deus, daquilo que é “masculino” e daquilo que é “feminino”». 9

A visão pacífica com que termina o segundo relato da criação ecoa no «muito bom» que, no primeiro relato, encerrava a criação do primeiro casal humano. É aqui que se encontra o coração do plano originário de Deus e da verdade mais profunda do homem e da mulher, como Deus os quis e criou. Por mais perturbadas e obscurecidas que sejam pelo pecado, tais disposições originárias do Criador jamais poderão ser anuladas.

7. O pecado original altera a maneira como o homem e a mulher acolhem e vivem a Palavra de Deus e a sua relação com o Criador. Logo a seguir à entrega do dom do jardim, Deus dá um mandamento positivo (cfr Gen 2,16), seguido de outro negativo (cfr Gen 2,17), em que implicitamente se afirma a diferença essencial entre Deus e a humanidade. Sob a insinuação da Serpente, essa diferença é contestada pelo homem e pela mulher. Em consequência, é também alterada a maneira de viver a sua diferença sexual. O relato do Génesis estabelece assim uma relação de causa e efeito entre as duas diferenças: quando a humanidade considera Deus como seu inimigo, a própria relação do homem e da mulher é pervertida. Quando esta última relação se deteriora, o acesso ao rosto de Deus corre, por sua vez, o perigo de ficar comprometido.

Nas palavras que Deus dirige à mulher a seguir ao pecado, é expressa de forma lapidar, mas não menos impressionante, o tipo de relações que passarão a instaurar-se entre o homem e a mulher: «Sentir-te-ás atraída para o teu marido e ele te dominará» (Gen 3,16). Será uma relação em que frequentemente se desnaturará o amor na mera busca de si mesmo, numa relação que ignora e mata o amor, substituindo-o com o jogo do domínio de um sexo sobre o outro. A história da humanidade reproduz de facto tais situações, em que se exprime claramente a tríplice concupiscência que São João recorda, ao falar da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da soberba da vida (cfr 1Jo 2,16). Nesta trágica situação, perdem-se a igualdade, o respeito e o amor, que no plano originário de Deus a relação do homem e da mulher exige.

8. Repassar estes textos fundamentais permite reafirmar alguns dados capitais da antropologia bíblica.

Antes de mais, há que sublinhar o carácter pessoal do ser humano. «O homem é uma pessoa, em igual medida o homem e a mulher: os dois, na verdade, foram criados à imagem e semelhança do Deus pessoal». 10 A igual dignidade das pessoas realiza-se como complementaridade física, psicológica e ontológica, dando lugar a uma harmoniosa «unidualidade» relacional, que só o pecado e as “estruturas do pecado” inscritas na cultura tornaram potencialmente conflituosa. A antropologia bíblica convida a enfrentar com uma atitude relacional, não concorrencial nem de desforra, os problemas que, a nível público ou privado, envolvem a diferença de sexo.

Há que salientar, por outro lado, a importância e o sentido da diferença dos sexos como realidade profundamente inscrita no homem e na mulher: «a sexualidade caracteriza o homem e a mulher, não apenas no plano físico, mas também no psicológico e espiritual, marcando todas as suas expressões». 11 Não se pode reduzi-la a puro e insignificante dado biológico, mas é «uma componente fundamental da personalidade, uma sua maneira de ser, de se manifestar, de comunicar com os outros, de sentir, exprimir e viver o amor humano». 12 Esta capacidade de amar, reflexo e imagem de Deus Amor, tem uma sua expressão no carácter esponsal do corpo, em que se inscreve a masculinidade e a feminilidade da pessoa.

A dimensão antropológica da sexualidade é inseparável da teológica. A criatura humana, na sua unidade de alma e corpo, é desde o princípio qualificada pela relação com o outro-de-si. É uma relação que se apresenta sempre boa e, ao mesmo tempo, alterada. É boa, de uma bondade originária declarada por Deus desde o primeiro momento da criação; mas é também alterada pela desarmonia entre Deus e a humanidade provocada pelo pecado. Esta alteração não corresponde, porém, nem ao projecto inicial de Deus sobre o homem e sobre a mulher, nem à verdade da relação dos sexos. Daí que, portanto, esta relação boa, mas ferida, precise de ser curada.

Quais podem ser os caminhos dessa cura? Considerar e analisar os problemas inerentes à relação dos sexos, só a partir de uma situação marcada pelo pecado, levaria necessariamente o pensamento a regredir aos erros acima acenados. Há portanto que romper esta lógica de pecado e procurar uma saída que permita extirpá-la do coração do homem pecador. Uma orientação clara nesse sentido encontra-se na promessa divina de um Salvador, em que aparecem empenhadas a «mulher» e a sua «descendência» (cfr Gen 3,15). É uma promessa que, antes de se cumprir, terá uma longa preparação na história.
(cont.)
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Notas:
1 Cfr João Paulo II, Exort. apost. post-sinodal Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981): AAS 74 (1982), 81-191; Carta apost. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988): AAS 80 (1988), 1653-1729; Carta às famílias (2 de Fevereiro de 1994): AAS 86 (1994), 868-925; Carta às mulheres (29 de Junho de 1995): AAS 87 (1995), 803-812; Catequese sobre o amor humano (1979-1984): Insegnamenti II (1979) - VII (1984); Congregação para a Educação Católica, Orientações educativas sobre o amor humano. Lineamentos de educação sexual (1 de Novembro de 1983): Ench. Vat. 9, 420-456; Pontifício Conselho para a Família, Sexualidade humana: verdade e significado. Orientações educativas em família (8 de Dezembro de 1995): Ench. Vat. 14, 2008-2077.
2 Sobre a complexa questão do gender, cfr ainda Pontifício Conselho para a Família, Família, matrimónio e «união de facto» (26 de Julho de 2000), 8: Suplemento a L'Osservatore Romano (22 de Novembro de 2000), 4.
3 Cfr João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 21: AAS 91 (1999), 22: «Esta abertura ao mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser para ele [o homem bíblico] a fonte de um verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em espaços infinitos, recebendo possibilidades de compreensão, até então impensáveis».
4 João Paulo II, Carta apost. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 6: AAS 80 (1988), 1662; cfr S. Ireneu, Adversus haereses, 5, 6, 1; 5, 16, 2-3: SC 153, 72-81; 216-221; S. Gregório de Nissa, De hominis opificio, 16: PG 44, 180; In Canticum homilia, 2: PG 44, 805-808; S. Agostinho, Enarratio in Psalmum, 4, 8: CCL 38,17.
5 A palavra ebraica ezer, traduzida com ajuda, indica o socorro que só uma pessoa dá a uma outra pessoa. O termo não comporta nenhuma conotação de inferioridade ou instrumentalização, se se tem presente que também Deus é por vezes chamado ezer em relação ao homem (cfr Ex 18,4; Sal 9-10, 35).
6 João Paulo II, Carta apost. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 6: AAS 80 (1988), 1664.
7 João Paulo II, Catequese O homem-pessoa torna-se dom na liberdade do amor (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti III, 1 (1980), 148.
8 João Paulo II, Catequese a concupiscência do corpo deforma as relações homem-mulher (23 de Julho de 1980), 1: Insegnamenti III, 2 (1980), 288.
9 João Paulo II, Carta apost. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 7: AAS 80 (1988), 1666.
10 Ibid., 6: l.c., 1663.
11 Congregação para a Educação Católica, Orientações educativas sobre o amor humano. Lineamentos de educação sexual (1 de Novembro de 1983), 4: Ench. Vat. 9, 42312Ibid.