28/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO XVIII

Do pudor na cópula, não só em geral, mas mesmo no casamento.

No próprio acto levado a cabo sob o impulso da referida paixão (libido), não só em certas desonestidades em que se procuram lugares escondidos para se evitar a justiça humana, mas também no trato com meretrizes (torpeza que a cidade terrena tornou lícita), embora se faça o que nenhuma lei desta cidade pune, todavia, mesmo a paixão (libido) permitida e impune evita os olhares públicos e, por vergonha natural, os próprios lupanares estão providos de lugares secretos. Pôde assim a impudicícia desfazer-se mais facilmente das peias proibitórias do que o impudor suprimir os covis desta vergonha. Os próprios libertinos chamam a isto torpeza e, embora se lhe entreguem, não se atrevem a fazê-lo ostensivamente.

Quê!? A própria união conjugal que se realiza em conformidade com os preceitos das leis matrimoniais (matrimonialium praescripta tabularum)
[i] para gerar filhos, não procura, embora seja lícita e honesta, um quarto afastado e sem testemunhas? Um cônjuge, antes de começar as caricias ao outro cônjuge, não despede todos os seus familiares e até os próprios paraninfos e todos os que qualquer parentesco autorizava a estarem presentes? É certo que como diz o maior orador romano (Romani maximus auctor eloquii), como alguém lhe chamou [ii], todos os actos legítimos pretendem realizar-se em plena luz, isto é, pretendem ser conhecidos; mas este acto tão legitimamente realizado embora aspire a ser conhecido, envergonha-se, todavia, se for contemplado. Quem é que, de facto, ignora o que entre si fazem os cônjuges para gerarem filhos? Para isso é que com tanta solenidade, se realiza o casamento. Contudo quando se trata de gerar os filhos, aos próprios filhos, se algum existe já, não se lhes permite que a isso assistam. Desta forma este acto legítimo pretende chegar à luz dos espíritos, mas recusa-se a chegar à luz dos olhos. Porque é isto senão porque o que se realiza decentemente em conformidade com a natureza é acompanhado da vergonha que procede do castigo?


CAPÍTULO XIX

Das partes do homem em que a ira e a paixão carnal (libido) têm movimentos tão desordenados que é necessário contê-los com o freio da sabedoria; mas antes do pecado não existiam na saúde da natureza.

É por isso que até os filósofos que mais perto estiveram da verdade reconheceram que a ira e a voluptuosidade (libido) são as partes viciosas da alma pois se lançam em agitada desordem mesmo para actos que a sabedoria não permite que se realizem — e por isso precisam de ser dirigidas pela m ente e pela razão. A presentam-nos eles a razão, como terceira parte da alma, colocada como que numa cidadela para as moderar — de forma que, com a razão a mandar e o libido e a ira a obedecerem, se possa conservar a justiça no homem, em todas as partes da alma. Essas duas partes, que eles reconhecem que são viciosas mesmo no homem sábio e moderado, têm que ser dominadas e contidas pelo freio da razão para serem conduzidas e dirigidas, dos objectos para que indevidamente tendem, para os que a lei da sabedoria autoriza: a ira — para o exercício duma justa repressão, a volúpia (libido) — para a propagação da prole. Mas, digo-vo-lo, estas partes não eram viciosas no Paraíso antes do pecado porque a nada conduziam de contrário à recta vontade nem a razão tinha, a bem dizer com o um freio, de as desviar. Se agora se movem desta m aneira, se com repressões e com freios são dominadas com mais ou menos facilidade pelos que vivem na temperança, na justiça e na piedade, — não constitui isso saúde que provenha da natureza, mas enfermidade que provém da culpa. Mas se, na realidade, a vergonha não tapa as obras da ira e de outras paixões em palavras e actos, com o procura tapar os efeitos da paixão libidinosa que aparecem nos órgãos genitais — porque será senão porque, nestas paixões, a acção dos membros não depende delas, mas da vontade quando esta lhes dá o seu consentimento, porque ela comanda totalmente a sua actividade? Efectivamente, aquele que, irado, grita ou fere, não poderia fazê-lo se a língua ou a mão se não movesse sob o impulso da vontade que, de certo modo, comanda. Esses órgãos, mesmo fora da ira, são movidos pela vontade. Pelo contrário a volúpia (libido) mantém tão submetidas ao seu império as partes genitais do corpo que estas só sob a sua acção é que se podem mover, quer a excitem quer ela surja espontaneamente.

É isto o que causa vergonha; e isto que, corando perante os olhares dos espectadores, se procura evitar. O homem suporta mais facilmente um a multidão de espectadores, quando injustificadamente se irrita contra o homem, do que o olhar de um só quando mesmo licitamente se une a sua mulher.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] V. Aulo-Gélio, Noctes atticae, IV, 3, 2.
[ii] Pharsália, VII, 62-63.

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