19/09/2014

Devemos também contar com quedas e derrotas

Se fores fiel, poderás chamar-te vencedor. Na tua vida, mesmo que percas alguns combates, não conhecerás derrotas. Não existem fracassos – convence-te –, se actuares com rectidão de intenção e com desejo de cumprir a Vontade de Deus. Nesse caso, com êxito ou sem ele, triunfarás sempre, porque terás feito o trabalho com Amor. (Forja, 199)

Somos criaturas e estamos repletos de defeitos. Eu diria até que tem de os haver sempre, pois são a sombra que faz com que se destaquem mais, por contraste, na nossa alma, a graça de Deus e o esforço por correspondermos ao favor divino. E esse claro-escuro tornar-nos-á humanos, humildes, compreensivos, generosos.

Não nos enganemos: na nossa vida, se contamos com brio e com vitórias, devemos também contar com quedas e derrotas. Essa foi sempre a peregrinação terrena do cristão, incluindo a daqueles que veneramos nos altares. Recordais-vos de Pedro, de Agostinho, de Francisco? Nunca me agradaram as biografias dos santos em que, com ingenuidade, mas também com falta de doutrina, nos apresentam as façanhas desses homens, como se estivessem confirmados na graça desde o seio materno. Não. As verdadeiras biografias dos heróis cristãos são como as nossas vidas: lutavam e ganhavam, lutavam e perdiam. E então, contritos, voltavam à luta.

Não nos cause estranheza o facto de sermos derrotados com relativa frequência, habitualmente ou até talvez sempre, em matérias de pouca importância, que nos ferem como se tivessem muita. Se há amor de Deus, se há humildade, se há perseverança e tenacidade na nossa milícia, essas derrotas não terão demasiada importância, porque virão as vitórias a seu tempo, que serão glórias aos olhos de Deus. Não existem os fracassos, se agimos com rectidão de intenção e queremos cumprir a vontade de saber vencer-se todos os dias”

Não é espírito de penitência fazer uns dias grandes mortificações e abandoná-las noutros. Espírito de penitência significa saber vencer-se todos os dias, oferecendo coisas – grandes e pequenas – por amor e sem espectáculo. (Forja, 784)

Mas ronda à nossa volta um potente inimigo, que se opõe ao nosso desejo de encarnar dum modo acabado a doutrina de Cristo: o orgulho que cresce quando não procuramos descobrir, depois dos fracassos e das derrotas, a mão benfeitora e misericordiosa do Senhor. Então a alma enche-se de penumbra – de triste obscuridade – crendo-se perdida. E a imaginação inventa obstáculos que não são reais, que desapareceriam se os encarássemos com um pouco de humildade. Com o orgulho e a imaginação, a alma mete-se por vezes em tortuosos calvários; mas nesses calvários não está Cristo, porque onde está o Senhor goza-se de paz e de alegria, mesmo que a alma esteja em carne viva e rodeada de trevas.

Outro inimigo hipócrita da nossa santificação: pensar que esta batalha interior tem de dirigir-se contra obstáculos extraordinários, contra dragões que respiram fogo. É outra manifestação de orgulho. Queremos lutar, mas estrondosamente, com clamores de trombetas e tremular de estandartes.


Temos de nos convencer de que o maior inimigo da pedra não é o picão ou o machado, nem o golpe de qualquer outro instrumento, por mais contundente que seja: é essa água miúda, que se mete, gota a gota, entre as gretas da fraga, até arruinar a sua estrutura. (Cristo que passa, 77)

Temas para meditar - 241


Aridez


Às vezes, quando a aridez de espírito é tão grande que não acerto a colher nem um só pensamento, recito um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria, e com estas orações toda me enlevo, pois me dão um alimento divino que me basta.



(santa teresinha do menino jesusHistória de uma alma, LAI, 11ª ed., pg. 229)

Jesus Cristo e a Igreja (54 perguntas) - 34

Que relação teve Pedro com Maria Madalena?

O evangelho de São João refere como no dia seguinte ao sábado, Maria Madalena se dirige ao sepulcro de Jesus e, ao ver a pedra que o fechava deslocada, lançou-se a correr para o anunciar a Simão Pedro e ao discípulo amado. Ao receber a notícia ambos correm para o sepulcro, onde Maria regressa mais tarde e tem um encontro com Jesus ressuscitado (Jo 20, 1-18). Isto é tudo o que os evangelhos nos dizem sobre a relação de Pedro com Maria Madalena.
Do ponto de vista histórico não se pode acrescentar nada mais. O Evangelho de Maria, evangelho apócrifo talvez do século II, que relata as últimas cenas da paixão, a ressurreição e as aparições de Jesus ressuscitado, refere-se a ela como “discípula do Senhor”.

Maria Madalena depois de ver o sepulcro de Jesus, lançou-se a correr para o anunciar a Simão Pedro. Isto é tudo o que os evangelhos nos dizem sobre a relação de Pedro com Maria Madalena.

Na literatura marginal originada nos círculos gnósticos encontram-se alguns escritos em que se observam confrontos entre Pedro e Maria. Como premissa, convém recordar que são textos que não têm carácter histórico e que recorrem a diálogos fictícios entre diversos personagens, como meio para transmitir as doutrinas gnósticas. O Evangelho de Maria é um destes textos, onde se relata a incompreensão de Pedro relativamente à revelação secreta que Maria recebeu (ver a pergunta Que diz o “evangelho de Maria Madalena"?). Outro escrito, ao que parece mais antigo, é o Evangelho de Tomé. Neste, narra-se, no final, que Simão Pedro disse: “Que Mariham se afaste de nós, pois as mulheres não são dignas da vida!”. Ao que Jesus respondeu: “Olha, eu encarregar-me-ei de a fazer varão, de maneira que também ela se converta num espírito vivente, idêntico a vós os homens: pois toda a mulher que se faça varão, entrará no reino do céu”. Também na Pistis Sophia Pedro se impacienta e protesta, porque Maria compreende melhor que os restantes os mistérios em sentido gnóstico e é louvada por Jesus: “Senhor, não permitas falar sempre a esta mulher, porque ocupa o nosso posto e não nos deixa falar nunca” (54b). Aqui, no entanto, a presença de Marta pode sugerir que a Maria que aparece não é a Madalena mas a irmã de Marta e Lázaro, embora se possam também ter identificado as duas Marias. Nestes textos observam-se traços herdados da mentalidade rabínica, segundo a qual as mulheres eram incapazes de apreciar a doutrina religiosa (cf. Jo 4, 27), e elementos próprios da antropologia gnóstica, onde o feminino ocupa um lugar destacado como veículo de comunicação de revelações esotéricas.

As relações entre Pedro e Maria Madalena devem ter sido semelhantes às que havia entre Pedro e João, Pedro e Paulo, Pedro e Salomé, etc. Isto é, as próprias daquele que estava à frente da Igreja com os outros que tinham sido discípulos do Senhor e que, depois da sua ressurreição, davam testemunho do ressuscitado e proclamavam o Evangelho. Outras relações são fantasia.

© www.opusdei.org - Textos elaborados por uma equipa de professores de Teologia da Universidade de Navarra, dirigida por Francisco Varo.


Sermão de Santo António - Ordenação sacerdotal




Evang., Coment. Leit. Espiritual (Sermão do Espírito Santo)

Tempo comum XXIV Semana

Evangelho: Lc 8, 1-3

1 Em seguida Jesus caminhava pelas cidades e aldeias, pregando e anunciando a boa nova do reino de Deus; andavam com Ele os doze 2 e algumas mulheres que tinham sido livradas de espíritos malignos e de doenças: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios, 3 Joana, mulher de Cusa, procurador de Herodes, Susana, e outras muitas, que os serviam com os seus bens.

Comentário:

É preciso caminhar por todos os caminhos da terra que nos estão indicados como nossa rota para a meta. Necessitamos ir a todos os lugares e contactar com todas as pessoas que, talvez sem o sabermos, esperam por nós. Temos de levar-lhes o Evangelho, a doutrina, o alento e auxílio que pudermos para que conheçam melhor e verdadeiramente se apaixonem por Cristo.

Ele urge-nos a que o façamos e levemos a cabo com obras de apostolado constante, sorridente e eficaz.

(ama, comentário sobre Lc 8, 1-3, 2010.09.03)

Leitura espiritual


Documentos do Magistério
Sermão do Espírito Santo
Padre António Vieira

III

Aplicando agora esta doutrina universal ao particular da terra em que vivemos, digo que, se em outras terras é necessário aos apóstolos, ou aos sucessores do seu ministério, muito cabedal de amor de Deus para ensinar, nesta terra, e nestas terras é ainda necessário muito mais amor de Deus que em nenhuma outra. E por quê? Por dois princípios: o primeiro, pela qualidade das gentes; o segundo, pela dificuldade das línguas.
Primeiramente, pela qualidade da gente, porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Bastava por prova a da experiência, mas temos também — quem tal cuidara! — a do Evangelho. A forma com que Cristo mandou pelo mundo a seus discípulos, diz o evangelista S. Marcos que foi esta: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, quia iis, qui viderant eum resurrexisse, non crediderunt, et dixit illis: Euntes in mundum universum praedicate Evangelium omni creaturae (Mc. 16,14 s): Repreendeu Cristo aos discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que fossem pregar por todo o mundo. — A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S. João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão, Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e indignamente chamaram Brasil. Agora pergunto eu: e por que nesta repartição coube o Brasil a Santo Tomé e não a outro apóstolo? Ouvi a razão.

Notam alguns autores modernos que Cristo notificou os apóstolos a pregação da fé pelo mundo, depois de os repreender da culpa da incredulidade, para que os trabalhos que haviam de padecer na pregação da fé fossem também em satisfação e como em penitência da mesma incredulidade e dureza de coração que tiveram em não quererem crer: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, et dixit illis: Euntes in mundum universum. E como São Tomé, entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a São Tomé lhe coube, na repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência. Como se dissera o Senhor: os outros apóstolos, que foram menos culpados na incredulidade, vão pregar aos gregos, vão pregar aos romanos, vão pregar aos etíopes, aos árabes, aos armênios, aos sarmatas, aos citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá pregar aos gentios do Brasil, e pague a dureza de sua incredulidade com ensinar à gente mais bárbara e mais dura. Bem o mostrou o efeito. Quando os portugueses descobriram o Brasil, acharam as pegadas de Santo Tomé estampadas numa pedra, que hoje se vê nas praias da Bahia; mas rasto, nem memória da fé que pregou Santo Tomé, nenhum acharam nos homens. Não se podia melhor provar e encarecer a barbaria da gente. Nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se achou rasto da pregação; as pedras conservaram memórias do apóstolo, os corações não conservaram memória da doutrina.

A causa por que as não conservaram, diremos logo, mas é necessário satisfazer primeiro a uma grande dúvida, que contra o que imos dizendo se oferece. Não há gentios no mundo que menos repugnem à doutrina da fé, e mais facilmente a aceitem e recebam, que os brasis; como dizemos logo, que foi pena da incredulidade de Santo Tomé o vir pregar a esta gente? Assim foi — e quando menos, assim pode ser — e não porque os brasis não creiam com muita facilidade, mas porque essa mesma facilidade com que creem faz que o seu crer, em certo modo, seja como o não crer. Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é incredulidade, e a fé é fé; nos brasis a mesma fé ou é, ou parece incredulidade. São os brasis como o pai daquele lunático do Evangelho, que padecia na fé os mesmos acidentes que o filho no juízo.

Disse-lhe Cristo: Omnia possibilia sunt credenti (Mc. 9,22): Que tudo é possível a quem crê. — E eles respondeu: Credo, Domine, adjuva incredulitatem meam: Creio, Senhor, ajudai minha incredulidade.

— Reparam muito os santos nos termos desta proposição, e verdadeiramente é muito para reparar.

Quem diz: creio, crê e tem fé; quem diz: ajudai minha incredulidade, não crê e não tem fé. Pois como era isto? Cria este homem, e não cria; tinha fé, e não tinha fé juntamente? Sim, diz o Venerável Beda: Uno eodemque tempore his, qui nondum perfecte crediderat, simul et credebat, et incredulus erat: No mesmo tempo cria e não cria este homem, porque era tão imperfeita a fé com que cria, que por uma parte parecia e era fé, e por outra parecia e era incredulidade: Uno eodemque tempore, et credebat, et incredulus erat. Tal é a fé dos brasis: é fé que parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé; é fé, porque creem sem dúvida e confessam sem repugnância tudo o que lhes ensinam, e parece incredulidade, porque, com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem, e com a mesma facilidade, com que creram, descreem.

Assim lhe aconteceu a São Tomé com ele. Por que vos parece que passou São Tomé tão brevemente pelo Brasil, sendo uma região tão dilatada e umas terras tão vastas? É que receberam os naturais a fé que o santo lhes pregou com tanta facilidade e tão sem resistência nem impedimento, que não foi necessário gastar mais tempo com ele. Mas tanto que o santo apóstolo pôs os pés no mar — que este, dizem, foi o caminho por onde passou à Índia — tanto que o santo apóstolo — digamo-lo assim — virou as costas, no mesmo ponto se esqueceram os brasis de tudo quanto lhes tinha ensinado, e começaram a descrer ou a não fazer caso de quanto tinham crido, que é gênero de incredulidade mais irracional, que se nunca creram. Pelo contrário, na Índia pregou São Tomé àquelas gentilidades, como fizera às do Brasil: chegaram também lá os portugueses dali a mil e quinhentos anos, e que acharam? Não só acharam a sepultura e as relíquias do santo apóstolo, e os instrumentos de seu martírio, mas o seu nome vivo na memória dos naturais, e o que é mais, a fé de Cristo, que lhes pregara, chamando-se cristãos de Santo Tomé todos os que se estendem pela grande costa de Coromandel, onde o santo está sepultado.

E qual seria a razão por que nas gentilidades da Índia se conservou a fé de São Tomé, e nas do Brasil não? Se as do Brasil ficaram desassistidas do santo apóstolo pela sua ausência, as da Índia também ficaram desassistidas dele pela sua morte. Pois, se naquelas nações se conservou a fé por tantos centos de anos, nestas por que se não conservou? Porque esta é a diferença que há de umas nações a outras. Nas da Índia, muitas são capazes de conservarem a fé sem assistência dos pregadores; mas nas do Brasil nenhuma há que tenha esta capacidade. Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre ensinando o que já está aprendido, e há-de de estar-de sempre plantando o que já está nascido, sob pena de se perder o trabalho e mais o fruto. A estrela que apareceu no Oriente aos Magos guiou-os até o presépio, e não apareceu mais. Por quê?

Porque muitos gentios do Oriente, e doutras partes do mundo, são capazes de que os pregadores, depois de lhes mostrarem a Cristo, se apartem dele e os deixem. Assim o fez S. Filipe ao eunuco da rainha Candace, de Etiópia: explicou-lhe a Escritura de Isaías, deu-lhe notícia da fé e divindade de Cristo, batizou-o no rio de Gaza, por onde passavam, e tanto que esteve batizado, diz o texto que arrebatou um anjo a S. Filipe, e que o não viu mais o eunuco: Cum autem ascendissent de aqua, Spiritus Domini rapuit Philippum, et amplius non vidit eum eunuchus (At. 8, 39). Desapareceu a estrela, e permaneceu a fé nos Magos; desapareceu S. Filipe, e permaneceu a fé no eunuco; mas esta capacidade, que se acha nos gentios do Oriente, e ainda nos de Etiópia, não se acha nos do Brasil. A estrela que os alumiar não há de desaparecer, sob pena de se apagar a luz da doutrina; o apóstolo que os baptizar, não se há-de ausentar, sob pena de se perder o fruto do Batismo. É necessário, nesta vinha, que esteja sempre a cana da doutrina arrimada ao pé da cepa, e atada à vide, para que se logre o fruto e o trabalho.

Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé.

Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.

Eis aqui a razão por que digo que é mais dificultosa de cultivar esta gentilidade, que nenhuma outra do mundo: se os não assistis, perde-se o trabalho, como o perdeu São Tomé; e para se aproveitar e lograr o trabalho, há-de ser com outro trabalho maior, que é assisti-los; há-se de assistir e insistir sempre com ele, tornando a trabalhar o já trabalhado e a plantar o já plantado, e a ensinar o já ensinado, não levantando jamais a mão da obra, porque sempre está por obrar, ainda depois de obrada. Hão-se de haver os pregadores evangélicos na formação desta parte do mundo, como Deus se houve ou se há na criação e conservação de todo. Criou Deus todas as criaturas no princípio do mundo em seis dias, e, depois de as criar, que fez e que faz até hoje? Cristo o disse: Pater meus usque modo operatur et ego operor [1]: Desde o princípio do mundo até hoje não levantou Deus mão da obra, nem por um só instante; e com a mesma ação com que criou o mundo, o esteve sempre, e está, e estará conservando até o fim deles. E se Deus o não fizer assim, se desistir, se abrir mão da obra por um só momento, no mesmo momento perecerá o mundo, e se perderá tudo o que em tantos anos se tem obrado. Tal é no espiritual a condição desta nova parte do mundo, e tal o empenho dos que têm à sua conta a conversão e reformação dela. Para criar, basta que trabalhem poucos dias; mas para conservar, é necessário que assistam, e continuem, e trabalhem, não só muitos dias e muitos anos, mas sempre. E já pode ser que esse fosse o mistério com que Cristo disse aos apóstolos: Praedicate omni creaturae (MC. 16,15). Não disse: Ide pregar aos que remi, senão: Ide pregar aos que criei, porque o remir foi obra de um dia, o criar é obra de todos os dias. Cristo remiu uma só vez, e não está sempre remindo; Deus criou uma vez, e está sempre criando. Assim se há-de fazer nestas nações: há-de aplicar-se-lhes o preço da Redenção, mas não pelo modo com que foram remidas, senão pelo modo com que foram criadas. Assim como Deus está sempre criando o criado, assim os mestres e pregadores hão-de estar sempre ensinando o ensinado, e convertendo o convertido, e fazendo o feito: o feito para que se não desfaça; o convertido, para que se não perverta; o ensinado, para que se não esqueça; e, finalmente, ajudando a incredulidade não incrédula, para que a fé seja fé não infiel: Credo, Domine: adjuva incredulita tem meam [2]. E sendo tão forçosamente necessária a assistência com estas gentes, e no seu clima, e no seu trato, e na sua miséria, e em tantos outros perigos e desamparos da vida, da saúde, do alívio, e de tudo o que pede ou sente o natural humano, vede se é necessário muito cabedal de amor divino para esta empresa, e se com razão entrega Cristo o magistério dela a um Deus, que, por afeto, e por efeitos, todo é amor: Ille vos docebit omnia [3].
(cont)









[1] Meu pai opera até hoje, e eu opero também. (Jo. 5, 17).
[2] Senhor, eu creio: ajuda tu a minha icredulidade (Mc. 9,23).
[3] Ele vos ensinará todas as coisas (Jo. 14,26).